Compositores e Intérpretes (II)
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 31 de julho de 1977
Os baianos continuam acontecendo musicalmente. Se Gil e Caetano, com seus novos discos ("Refavela" e "Bicho", respectivamente, da Philips) ocupam um natural destaque, não podemos esquecer outros filhos da boa e musical terra, em seus estilos diferentes. Por exemplo, Paulo (Francisco [Espindola] Brito, ex-bancário, ex-estudante, ex-craque do futebol baiano, após um baião ("Chegando"), que chegou a aparecer em 1975, ganha agora o seu primeiro elepê ("Atenção", RCA Victor, 183.0204, maio/77). Da quinta geração de baianos - considerando Caymmi como da primeira, João Gilberto da segunda, Gil & Caetano da terceira, Antonio Carlos & Jocafi, Tom & Dito da quarta, Paulo Britto é um compositor-cantor que não esconde a influência maior de Chico Buarque ("E um dia chegou Chico Buarque que mudou tudo na minha cabeça. Pintou a vontade de começar a compor série e profissionalmente ...").
As 12 músicas de Paulo - "Lucia Quer", "Sem Molho", "Muito Queijo Pouco Pão", "Boca Cheia", e "Deixa Comigo", entre outras - demonstram esta salutar influência: mesmo sem a força poética/política de CBH, Paulo Britto o lembra em seu estilo suave e intimista de interpretar seus versos amparados em arranjos de quatro excelentes profissionais, inclusive o velho e sempre admirável Radamés Gnatalli ("Valsa" e "Atenção"). Com um estilo totalmente diferente é Laranjeiras, que em "As Aventuras do Laranjeiras" (Polyfair/Phonogram, 2494588, junho/77), propõe uma espécie de rock-cordel, fundindo elementos modernos a letras picantes, maliciosas, picarescas, como "Moda de Viola", "Filomena", "Deixa a Judite", "Jeitinho Carinho", "Lobisomem Não é Bicho Não".
Baianos também são Os Tincoãs, trio de compositores-cantores revelados há 3 anos, pelo incansável Adelson Alves, num lp da Odeon e que agora ressurgem em novo e vigoroso disco (RCA Victor, 103.0207, junho/77). Se o ainda inédito (em disco) grupo Vissungo, vem pesquisando os vestígios de uma música negra desenvolvida numa região de Minas Gerais, no século XIX, doios dos integrantes deste trio - Mateus e Dadinho, também voltam-se aos cantos afros, numa das mais válidas, como acentua Adelzon nas lúcidas notas de contracapa deste brasileiríssimo disco. Bisnetos de escravos e ligados à linhagem das famílias negras que fundaram no Recôncavo da Bahia o primeiro terreiro de candoblé, de nação "geipe", a famosa e respeitada "roça" do Ventura, na cidade de Cachoeira. Os Tincoãs adaptam para uma linguagem musicalmente depurada, a rítmica e forte música de raízes umbandistas, do candomblé - com duas faixas intercalados por textos falados por Adelson Alves ("Enterro da Iyalorixá") e Mateus Aleluia ("Acará"). Honesto, bem produzido, o elepê dos [Trincoãs] e, antes de tudo, um documento, sonoro de uma música de raízes na cultura africana - necessária e válida para ser ouvida.
O BOM SAMBA - Benito Di Paula à parte, o samba existe! Não o "sambão-jóia", feito exclusivamente para faturar fácil, mas o samba honesto, que nasce no morro. Como os que Nelson Cavaquinho, Candeia, Guilherme de Brito e Elton Medeiros sabem fazer e que mostram num dos melhores discos deste ano ("Quatro Grandes do Samba", RCA Victor, 103.0210, junho/77). Aliás, é lamentável que enquanto temos tanto som supérfluo, quatro criadores da dimensão destes tenham que dividir as 12 faixas de um único disco.
Produzido por Jorge Santos, animador das noites de samba do Teatro Opinião, o disco é um registro dos mais válidos, por trazer Nelson Cavaquinho cantando sambas como "Notícia", "Amor Perfeito" e "Não é Só Você", além de revelar que seu letrista Guilherme de Brito, também sabe dar o recado musical, interpretando, por exemplo "Quando Eu Me Chaar Saudade", "A Flor e o Espinho", "Gosto de Luar" e "A Vida". O veterano Candeia, que fundou há 3 anos a Escola de Samba Quilombo, destinada a desenvolver a autenticidade do Carnaval - e que já fez em 75 um excelente lp na Tapecar - está presente em "Expressão do Teu Olhar" (um dos mais belos sambas que ouvimos nos últimos anos) e "Sou Mais O Samba", que divide com [a] admirável Ivone Lara (que apesar de ter já várias músicas gravadas até agora não mereceu o seu lp solo). Por último, Elton Medeiros, parceiro querido de Paulinho da Viola, que há 5 anos fez um dos 10 melhores discos do ano, exibe sua voz, linda, afinada, em suas composições "Sem Ilusão" (parceria com Antonio Valente), "Chove Não Molha" (com Joacyr Santana) e "Rita Maloca". Os quatro juntos, cantam "Não Vem" (["]Assim não dá"), de Candeia - uma espécie de posicionamento político em relação ao (deplorável) "Black Rio". Anotem:
"Quatro Grandes do Samba" é um dos melhores discos do ano, indispensável para quem sabe amar a nossa MPB.
Dois outros discos que na autenticidade de seus intérpretes poderão merecer a inclusão entre os melhores do ano: "Espelho" como João Nogueira (Odeon, SMOFB, 3934, maio/77) e "Contrastes" com Jards Macalé (Som Livre, 403.6111, junho/77). Para quem acompanha a carreira de Nogueira, desde que Adelzon Alves o incluiu em duas marcantes faixas de "Quem Samba Fica" (Odeon, 1971) - "Homem de Um Braço Só" e "Mulher Valente é Minha Mãe", não é surpresa: com toda razão considerado a maior revelação do samba carioca dos últimos anos. Nogueira só tem melhorado de disco para disco. Neste "Espelho", a partir desta música-título, quase autobiográfica, canção, com letra de Paulo César Pinheiro (e que gravada em compacto simples, há 3 anos, passou desapercebida), Nogueira, com excelente apoio instrumental, orquestrações e regências de Geraldo Vespar, apresenta 12 faixas realmente extraordinárias, cada uma coom um sentido musical sociológico da maior importância. Temos seus novos e gostosos sambas - como "Pimenta no Vatapá" (parceria com Cláudio Jorge), "Espere Oh! Nega", "Dora das 7 Portas", "Wilson, Geraldo, Noel" (homenagem a 3 grandes mestres dos quais é autêntico e legítimo sucessor), "Batucajé" (com Wilson Moreira), "Samba de Amor" com Mauro Nogueira e sua irmã Gisa), "Quem Sabe é Deus" e "Desenganos" (com Mauro Duarte).
Nogueira também soube escolher sambas perfeitos de outros mestres para gravar, como "Apoteose Ao Samba" de Zinco e Darcy Caxambu ou o divertido "Malandro J.B.", de Renato Barbosa/Nei Lopes, citando otemido J. Ramos Tinhorão e com alusões que lembram até [acontecimentos] que envolveram o respeitado Sergio Cabral. Neste samba, João Nogueira coloca muito da informalidade do chamado "samba de breque", estilo criado pelo veterano Moreira da Silva e que tem em Jard Macaé (1), o seu maior sucessor. Como podemos observar em "Conto do Pintor", um dos mais perfeitos sambas-de-breque do mestre Miguel Gustavo (1922-1972), uma das melhores faixas de "Contraste", onde Macalé homenageia, já na escolha dosamba-título, outro nome de santíssima trindade do samba: Ismael Silva (2). Eclético, versátil, sem preconceitos, Macalé demonstra as possibilidade de um bom intérprete percorrer os mais diversos caminhos, pois ao lado dos sambas de Gustavo ou Ismael, homenageia o violonista Anibal Augusto Sardinha (1920-1955), com um chorinho antológico ("Garoto"), recria com um arranjo político um velho samba da dupla carnavalesca Haroldo Lobo/Milton de Oliveira ("Relógio do Cuco") e como compositor, vai desde a inclusão de uma "Negra Melodia" (Soul Train Domingueira), que a parceria de Wally Sailormooon levou a inclusão de expressões em inglês, a gravação do "reggae" "Black And Blue" (Raza/Saller/Brooks), ou músicas de várias épocas como o "Poema da Rosa", com letra de Brecht que Augusto Boal traduziu para a peça "Mãe Coragem", "No Meio do Mato" e um excelente "Choro de Arcanjo" (3), onde cedeu a faixa esclusivamente à histórica orquestra Tabajara, de Severino Araújo, numa homenagem aos músicos que tanto marcaram sua infância. "Cachorro Babucho", do maldito Walter Franco, tem uma apropriada interpretação - tornando-a bastante consumível e em "Sim Ou Não", de Geraldo Gomes Mourão (4), o amparo musical do grupo Bendegó e do acordeonista [Dominguinhos] valorizam a faiza. Aliás em todas as músicas, Macalé teve a presença de músicos excelentes, além das vozes de Marlui Miranda, uma nova compositora violonista - cantora, que vem dividindo com ele vários shows. Músicos como Paulo Moura Wagner Tiso e Severino Araujo, dividindo os arranjos e a criação de cada faixa, contribuíram para fazer de "Contrastes" um dos mais significativos elepês deste ano. Candidato sério a entrar na lista dos melhores.
Outro disco que também vale, sem discussão, os Cr$ 100,00 que custa é "Somos Todos Iguais Nesta Noite" (Odeon, XEMCB 7023, maio/77), que traz Ivan Lins em excelente forma, acompanhado pelo grupo Modo Livre (Gilson Peranzetta, João Cortêz e Fred Barbosa). Compositor da maior importância, revelado no MUC e que, a partir de sua premiação no PIC-70 ("Amor é Meu País") sofreu um processo de desgaste na programação de tv "Som Livre Exportação". Ivan Lins hoje, liberto de uma parceria prejudicial com Ronaldo Monteiro, encontrou em Vitor Martins o poeta ideal para as suas harmonias de imensa força e o resultado são composições como "Quadras de Roda", "Um Fado", "Dinorah, Dinorah", "Choro das Águas", "[Somos] Todos Iguais Nesta Noite", "Mãos de Afeto" (5), "Dona Palmeira", "Ituverava" e "Qualquer Dia" que fazem deste álbum, enriquecido com capa/programação [visual] de Mello Menezes, um disco importantíssimo em sua carreira. Com Maurício Tapajós é a suave "Aparecida", que tem um momento Einhorn. Dispensável apenas "Velho Sermão", resquício da fase (hoje superada) de parceria com Ronaldo Monteiro. Um disco lindo, sério, que faz Ivan Lins merecer toda admiração de seu público.
Carlos Café é um compositor de muito futuro comercial.Tanto é que o produtor Mazola o levou para a WEA Discos, por onde sai o seu primeiro lp ("Prá Que Vou Recordar", Warner, 26.011, maio/71).
As nove músicas são de Defé, com diferentes parceirosm, bons instrumentistas participaram das gravações e por certo o público carioca que curte o "Black Rio" (aliás, Oberdan Magalhães, saxofonista e integrante da "Banda Black Rio", é parceiro de Defé em "O Metrô", faixa que encerra o lado B garantirá boa bendagem deste disco. A Warner sabe o que faz em termos comerciais, não resta dúvida nenhuma.
NOTAS
1 - Jards Macalé e Moreira da Silva estarão em Curitiba, no mês de setembro, apresentando-se durante 5 dias no Teatro Guaíra, dentro do "Projeto Pixinguinha".
2 - Ismael Silva, 72 anos, 60 de samba, fundador da primeira Escola de Samba ("Deixa Falar", 1929), lançou nacionalmente o samba "contrastes" em show que Ricardo Cravo Albim produziu e que teve a sua estréia no Paio, nas vésperas do Carnaval de 73.
3 - "Choro do Arcanjo" faz parte da trilha sonora de "Tenda dos Milagres", 1975/6, de Nelson Pereira dos Santos.
4 - Da trilha sonora do filme "Omuleto de Ogun", onde Macalé apareceu como ator.
5 - Lançado por Naná Caymmi, "Mãos de Afeto" é, sem dúvida uma das mais belas canções dos últimos anos. Naná e Ivan, a propósito, inicial dia 15 de agosto, no auditório Bento Munhoz da Rocha Neto, o "Projeto Pixinguinha", apresentando-se todas as tardes (18h30min), com ingressos a apenas Cr$ 10,00.
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