Curtas metragens de Fernando & Fernanda
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 17 de julho de 1991
Hoje os jornais nacionais deverão divulgar a relação dos filmes que disputarão a partir do dia 5 de agosto o 19o. Festival de Gramado do Cinema Brasileiro. Entre os curtas com maiores possibilidades de entrar na competição está "Os Desertos Dias", de Fernando Severo. No sábado, 13, antes da segunda sessão da noite no Cine Plaza (que está exibindo um medíocre filme policial, "Ajuste Final") alguns (poucos) espectadores, convidados pelo autor, conheceram a mais nova produção cinematográfica feita no Paraná em sua primeira exibição pública.
Justificando seu sobrenome, Fernando, catarinense de Caçador, 33 anos, desde 1975 em Curitiba e formado em Comunicação Social, pela UFPR, é um cinéfilo exigente e rigoroso, especialmente na apreciação de trabalhos de colegas curta-metragistas. Detalhista, na busca sempre de uma perfeição estética, preferindo geralmente obras de realizadores não comerciais, em seu resultado final, pode lhe valer novas premiações. Entre 1988/89, com seu "O Mundo Perdido de Kozak", conquistou 17 premiações diversas.
Em "Os Desertos Dias" deixa o documental e passa para a ficção, com um roteiro longinquamente inspirado num conto do argentino Jorge Luís Borges (1899-1986) - e cujo primeiro título ("Longas Sombras no Fim da Tarde") acabou sendo abandonado, no qual trabalhou exaustivamente com a ajuda de dois amigos - o múltimo [Valêncio] Xavier e José Rubens Siqueira, este o único ator do filme.
Partindo de um argumento minimalista - um exilado político num país estrangeiro, vivendo em pequena cidade litorânea, sente a inexorabilidade da morte anunciada - "Os Desertos Dias" busca captar toda a travessia de uma solidão em terra estranha e de um encontro final com o destino - colocado já na seqüência que antecipa os créditos. Fica, entretanto, uma abertura para a interpretação de cada espectador: realidade ou fantasia? Como a própria estrutura dramática nada informa sobre as razões que levaram o personagem - um professor de meia idade, a buscar o anonimato numa distante cidade litorânea faz "Os Desertos Dias" lembrar um conto ("Os Assassinos", de Ernest Hemingway (1899-1961) (*) que reduzia a pouco mais de 80 linhas, sem detalhamentos, a passividade do personagem frente à morte certa.
Extremamente cool e com um distanciamento emotivo que é compensado pela estética de uma fotografia belíssima do carioca Flávio Ferreira, que capturou toda a plasticidade espontânea dos velhos casarões, praças, ruínas na paisagem natural de Morretes, Antonina e a Ilha do Mel. Embora seja difícil fazer prognósticos sobre uma mostra competitiva no qual se desconhecem os outros concorrentes, sem dúvida que a fotografia de "Os Desertos Dias" poderá valer a Ferreira um Kikito em Gramado. Praticamente no mesmo período (março/abril-89) em que veio fazer "Os Desertos Dias", no litoral, Ferreira também (????) do último festival de Brasília. Se no filme de Fernando Severo, a fotografia foi basicamente em cenários naturais, durante o dia - tendo condições excelentes de iluminação - em "A Loira Fantasma", pela própria estrutura do roteiro, as imagens foram noir, com 90% de seqüências rodadas à noite.
Tanto Fernando, em "Os Desertos Dias", como Fernando em "a Loira Fantasma" partiram do anticlímax da estória que pretendem contar (em Morini, a censura do secretário-de-redação para a divulgação dos fatos ligados ao fantasma que assusta a cidade; Severo, abrindo com seu herói sendo assassinado). Estas opções de linguagem narrativa retiram dos dois curtas o elemento-surpresa, que, nos casos de curtas, funciona para a comunicabilidade do público - quase como um anedótico componente. Entretanto, foram opções tomadas livremente pelos autores, que embora trabalhando com ajuda de co-roteiristas ( Fernando Morini teve a participação do ex-repórter policial Nelson Padrela na elaboração do roteiro) mantiveram total controle da produção.
Ao contrário de "Lápis, de Cor e Salteado", de Nivaldo Lopes (Palito) - o primeiro dos quatro projetos beneficiados há três anos com o convênio Secretaria da Cultura/ Embrafilme - os filmes de Fernando & Fernanda foram trabalhos esteticamente bem acabados. ( Há um quarto projeto igualmente beneficiado por aquele convênio , o filme de animação "A Flor", das Irmãs Wagner, que se encontra paralisado).
Os recursos para a finalização destes curtas sofreram incidentes de percurso com o fim da Embrafilme e a falta de um empenho maior do governo do estado em dar condições para cobrir despesas que seus realizadores não podiam suportar individualmente. Só com outros patrocínios os projetos puderam ser concluídos, dando condições de que após um longo jejum o Paraná possa voltar ao menos a competir em eventos cinematográficos que acontecem neste segundo semestre (após Gramado, haverá o XXIV Jornada de cinema de Salvador e, no final do ano, possivelmente, o VII RioCine Festival).
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Outro ponto que aproxima os curtas de Fernando & Fernanda: além da utilização do mesmo fotógrafo, também buscaram em artistas de São Paulo os intérpretes para seus filmes. Fernanda convidou Bronie Lezneau, 35 anos, para o personagem-título (a justificativa foi a de que, na época, não encontrou em Curitiba nenhuma atriz com o tipo físico que desejava para a personagem).
Severo recorreu a um veterano ator paulista, José Rubens Siqueira (Madureira), 46 anos, paulista de Sorocaba, que desde 1958 vem fazendo teatro, não só como intérprete, mas também como autor e diretor - e que após trabalhar com curtas em 16 mm e filmes de animação, realizou o episódio "Ciepsusana" do filme "Em Cada Coração Um Punhal" (1969), "O Pecado de Maria" (1971) e tentou, por três anos, finalizar uma adaptação da peça "Marta de Tal" de Graça Mello para o cinema ( "Amor e Medo", 1971/74). Com esta bagagem artística, Siqueira compõe um personagem frio, dentro de uma concepção do homem acuado numa terra estranha - sentindo em cada momento o instante final.
Noel Nascimento Júnior, pianista e compositor, criou uma trilha sonora integrada às imagens -sabendo retirar da formação instrumental escolhida (violinos, viola, violoncelo e piano) os elementos dramáticos para as cenas em que a música adquire a condicionante necessária ( o filme não tem diálogos, apenas uma narração em off, que se perderá se as aparelhagens dos cinemas em que for exibido não tiverem ótima qualidade - coisa rara em nosso país).
Fernando Severo, em seu rigor estético, trabalhou longamente na escolha dos cenários: fez mais de 4 horas de filmagens em vídeo, desenvolveu com o desenhista Abílio Campos um storyboard perfeito - dando assim condições para que a fotografia fluísse de forma magnética - entre o lúgubre silêncio de ruas e praças de cidades adormecidas - mas de belíssimo cenário colonial ( Morretes e Antonina) aos interiores dos abandonados armazéns das Indústrias Matarazzo - finalizando com aspectos da Ilha do Mel - e seqüências em que o mar, as canoas e pescadores no horizonte - remetem a lembranças do clássico "Limite"(31, de Mário Peixoto)- o que Severo, admite, como uma de suas influências.
NOTA (*) - "Os Assassinos" teve duas versões cinematográficas: a primeira. Do alemão-americano Robert Siodmark, com Burt Lancaster em sua estréia; a segunda, de Don Siegel, em 1964, com Ronald Reagan, em seu último trabalho no cinema.
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