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Aramis

Discos do Ano

Entre tantos fatos importantes que tem marcado a música brasileira nesta década, justificando a atenção que se deve dar à essa forma tão importante de manifestação artística e de exteriorização da sensibilidade e cultura de nosso povo, consideramos, sem dúvida, como uma das mais importantes o fato de, finalmente, um compositor-intérprete como Milton Nascimento ter deixado a condição de artista admirado apenas por uma minoria e passado a ser curtido consumido em grandes proporções. Mesmo considerando todo o processo de marketing/modismo, astuta e comercialmente imposto ao seu redor - como de tantos outros compositores/intérpretes dos anos 60 para cá (1), não deixa de ser salutar sentir que sua proposta musical, o trabalho que desenvolve, a seriedade com que realizam cada novo disco, encontre resposta junto ao público - especialmente na faixa entre 20/40 anos, mais facilmente aberta e sensível ao seu som. Principalmente depois do desastroso, triste e frustrante espetáculo que foi a fracassada participação de Milton e seu grupo no FIJ - SP (2), é revigorante, de todas as fórmulas, ouvir - conhecer "Clube da Esquina nº 2" (Odeon, 31C.164422832/3/Outubro/78), obra só comparável ao "Clube da Esquina" (nº 1) (Odeon, 12.199, agosto/72). Nos seis anos que separam estes dois álbuns duplos, Milton caminhou muito pelas estradas, experimentou diferentes parcerias, sofreu altos e baixos, artística e pessoalmente - inclusive com gravações no Exterior. Pessoa extremamente tímida, de difícil acesso - mas que merece a admiração integral de nomes dos mais respeitados, Milton é aquilo que sempre dissemos: um dos tripés (os outros dois: Egberto Gismonti e Hermeto Paschoal) quando se fala numa fórmula da nova música brasileira, sem restrições de gêneros, sem departamentos estanques. Particularmente não nos incluímos entre a legião que aceita de olhos fechados, embasbacada, radicalmente como obra prima, perfeição absoluta e acima de qualquer crítica, tudo que ele faz. Ao contrário, as suas apresentações ao vivo, mesmo quando cercadas de altos cuidados de produção (3), nunca chegaram a emocionar como audição de seus melhores discos. Milton é um artista criador de rara força, cantor único, de uma personalidade vocal que o faz capaz de chegar a emocionar qualquer ouvido sensível, independente de barreiras de língua e geográficas (se assim não fosse a A & M não lhe daria um milionário contrato para lançar seus discos no Exterior). Como instrumentista - violão, basicamente, mas também tecladista e percussionista, é dono de harmonias de uma beleza única. Nascido no Rio (26/10/1942), adotado aos primeiros meses de vida pelo casal Josino Brito Campos, de Três Pontas, MG, fazendo música, com violão a partir dos 15 anos, num conjunto do qual participava o pianista Wagner Tiso (4), a carreira de Milton se integra a música - e todos os seus reflexos a partir de 1960: o rock, a bossa nova, os beatles. Mas, desde 1963, com experiências de músicos de conjuntos de baile (W'is Boys, Belo Horizonte) e do trabalho com o talentoso - embora desconhecido - compositor-instrumentista mineiro, Pacífico Mascarenhas (5), Milton passaria a encontrar num grupo ao qual se dominava de "Clube da Esquina" (Fernando Brant, Marcio e Lo Borges), toda uma unidade criativa. Unidade esta que germinaria numa obra a explodir, em termos nacionais, ou outubro/67, quando na parte nacional do FIC - Rio de Janeiro, teria três músicas classificadas e premiadas: "Travessia" (2º lugar), "Morro Velho" (7º) e "Maria Minha Fé" (classificada entre as 15 finais). Não há aqui espaço - sem motivo - para biografias sobre Milton e seus parceiros, inclusive porque já é tema não para apenas registros jornalísticos, mas inclusive para uma tese universitária, para ensaios volumosos, para livros interpretativos - se a nossa bibliografia não fosse tão raquítica (6). "Clube da Esquina 2" é, em nosso entender, o mais importante álbum de música brasileira - e vamos eliminar as adjetivações de "popular" ou "contemporânea", aparecidas neste final de ano e, seguramente, como o volume 1, terá lugar destacado, possivelmente o primeiro (7) na lista dos 10 melhores do ano. Um álbum duplo para ser dissecado, analisado, como merece, exigiria, repetimos, um espaço que, infelizmente, não dispomos. Mas é um documento de quem, quando se dispõe a fazer um trabalho sério, livre de imposições comerciais, com liberdade, e sempre apiado num grupo de parceiros e instrumentistas que há 10 anos o acompanham, é único. [dois parágrafos ilegíveis] É importante, cremos, ouvir os dois discos que formam "Clube da Esquina", em suas 24 canções, numa [seqüência], com a máxima atenção e recolhimento (recomenda-se o uso de fones de ouvidos). Sem intenção de formar uma sinfonia ou uma obra integrada, Milton e seus dois colegas de produção - Novelli e Ronaldo Bastos - integraram as canções de forma racional (classificar de política parceria demagogia, embora consciência, a realidade, os dados para reflexão sejam óbvios). Assim, por exemplo, no segundo disco, é um "credo" (Milton/Fernando Nascimento) que abre, com este achado de poesia: "Caminhando pela noite de nossa cidade/Ascendendo a esperança e apagando a/escuridão/Vamos, caminhando pelas ruas de nossa cidade/Viver derramando a juventude pelos corações". ["]Nascente " (Flavio Venturini/Murilo Antunes), é quase um hakai : "Clareia manhã/O sol vai esconder a clara [estrela]/Ardente/Pérola de céu refletindo [teus] olhos/A luz do dia a contemplar teu corpo/Sedento/Louco de prazer e desejos/Ardentes", "Ruas da cidade" (Lô e Márcio Borges) é uma canção urbana, com palavras brasileiríssimas, tendo um verso que merece ser epígrafe em qualquer tratado que o arquiteto Jaime Lerner escreva sobre urbanismo: "A cidade plantou no coração Tantos nomes de quem morreu Horizonte perdido no meio da selva Cresceu o arraial". Já conhecido da gravação de Simone, "Paixão e Fé" (Tavinho Moura/Fernando Brandt) e "Canoa, Canoa" (Nelson Angelo/Fernando Brandt) tem novos arranjos, nova vida. "Casamento de Negros" , música recolhida e adaptada do folclore chileno por Violeta Parra, com última estrofe de Polo Cabrera, na voz de violão de Milton é mais um perfeito toque latino este disco continental. "Olho D'Água" (Paulo Jobim/Ronaldo Bastos), uma letra vertical, um toque jobiniano - elogio maior não poderia haver. "Pão e Água" (Lô/Márcio Borges/Roger Mota) tem bela construção, "Mistérios", de Joyce e Maurício Maestro, com participação de Joyce no violão, é um aperitivo do imenso talento dessa cantora-compositora, que ouvimos no Pixinguinha deste ano - e que imerecidamente não teve ainda chance de mostrar suas últimas músicas - tema para um longo comentário. "E Daí?", parceria com Ruy Guerra, tema de "A Queda" (11), pode, agora, ser melhor assimilada do que quando ouvida apenas como fundo na trilha sonora do excelente filme. Por último um registro especial: "O Que foi feito Deverá" (Milton/Fernando Nascimento) acoplada a "O Que Foi Feito De Verá" (Milton/Márcio Borges), com extraordinária participação de Elis Regina, - e uma experiência nova, única e absolutamente absorvente: letras diversas - mas no mesmo espírito - repletas de temas para pensar, amar e, principalmente emocionar-se. Como dissemos, em cada faixa, houve preocupação de colocar os músicos certos, fazer arranjos instrumentais e vocais perfeitos. Participações especiais diversas - inclusive das vozes dos Canarinhos de Petrópolis (em "Olho D'Agua" e " Paixão e Fé"), a inclusão de composições de diferentes autores, a divisão dos arranjos a vários (e competentes) pessoal - Francis Hime, Tavinho Moura, o grupo Tacuabé, Nelson Angelo, Cesar Camargo Mariano, Maurício Maestro, Lobo Borges e, principalmente Wagner Tiso e o próprio Milton fazem deste "Clube da Esquina" um trabalho de criação coletiva, integrada. Corais diferentes - unindo mesmo vozes "sagradas" (Chico, Hime, Olivia, Joyce, o grupo Boca Livre, etc.) a participação de seguros grupos de músicos de formação erudita (cellos, especialmente), os melhores flautistas do País (Danilo [Caymmi], Copinha, Mauro Senise, etc.), de Maurício Einhorn, na harmônica ("Rua da Cidade"), para só lembrar alguns exemplos - fazem de cada momento deste disco, um registro - documento para ser curtido, analisado e estudado. Poucos lançamentos, em nossa opinião, aparecidos nos últimos anos, no Brasil, merecem tanta atenção como este. Como no volume 1 do "Clube da Esquina", as capas interiores são dedicadas a fotos de amigos, músicos, companheiros - em épocas e ocasiões diferentes. Um visual panorâmico do que Milton & Cia. pretende lembrar e homenagear. O selo e o decalque do disco é uma nuvem colorida, branca e azul. Esperança. A capa do álbum é a reprodução de uma foto belíssima de Franck M. Stucliffe ("Setrn Reality", da Suftcliff Gallery, de Londres). Milton Nascimento, que praticamente não conhecemos pessoalmente, é uma pessoa difícil, tímida. Tem momentos tristes em sua obra. Mas este "Clube da Esquina 2" o coloca, com justiça, entre os nomes mais importantes da música contemporânea - para todos os homens do mundo, capazes de, com sensibilidade, entenderem e amarem. NOTAS 1 Paulo Pila, atual empresário de Milton Nascimento, tem montando esquemas ao estilo "superstar" em torno de Milton que prejudicam uma maior comunicabilidade com o público e, especialmente, com a imprensa. 2 Na quinta-feira, 14/9/78, a apresentação de Milton e seu grupo no Festival Internacional de Jazz (Parque Anhembi, São Paulo) foi desastrosa, merecendo sérias críticas. Diversos motivos contribuíram para tornar a sua participação das mais desastrosas nas duas sessões do Festival. A tal ponto que Elis Regina, nos bastidores, chegou a chorar de tristeza ao ver um talento tão grande como Milton atuar de forma tão infeliz. Aliás, o erro foi incluí-lo num festival de jazz, já que a sua música tem outra dimensão. 3 Uma das causas que tem feito rarear apresentações ao vivo de Milton é a exigência de dezenas de músicos, todos do mais alto custo, para acompanhá-lo. Com isso, só por duas vezes exibiu-se no auditório Bento Munhoz da Rocha Neto. 4 Wagner Tiso, tecladista e um dos músicos mais identificados com o trabalho de Milton, acaba de fazer seu primeiro lp solo, pela Odeon, já registrado por nós há algumas [semanas]. 5 Compositor e cantor mineiro, Pacífico Mascarenhas nunca deixou Belo Horizonte, onde é rico industrial. Seu último disco saiu para Tapecar, há 3 anos. 6 Milton seria focalizado num documentário cinematográfico, mas que não foi terminado devido à morte do diretor, num acidente rodoviário. Como ator, apareceu em "Os Deuses e os Mortos" (1969, de Ruy Guerra), para o qual compôs a trilha sonora, bem como fez a música de "Tostão, a fera do ouro" (70, de Ricardo Gomes Leite e Paulo Laender). 7 Muitos álbuns importantes aparecerão ainda este ano, inclusive um de Chico Buarque, com músicas que há anos estavam proibidas pela censura. 8 Letrista de várias músicas que apareceram em festivais nos anos 60, contista e romancista, Milton Nepomuceno foi correspondente do JT em Buenos Aires e há 3 anos é o correspondente da revista "Veja" na Espanha. 9 Mercedes Sosa, que se tornou grande amiga de Milton e Chico, gravou recentemente um compacto simples com "O Cio da Terra". No penúltimo lp de Milton ("Heraes", 77), Mercedes já havia participado na gravação de uma faixa. 10 Anteriormente, Drummond, teve poemas musicados por Dulce (ex-Nunes, [esposa] de Egberto Gismonti ("Samba do Escritor", Philips, 1966) e, mais recentemente por Paulo Diniz. Mas sem a felicidade com que Milton conseguiu agora. 11 Realizado em 1976, por Ruy Guerra e Nelson Xavier, "A Queda" obteve o Leão de Prata no Festival de Berlim no ano passado, só agora sendo lançado no Brasil (8ver comentário na coluna "Tablóide", 4ª página de O ESTADO, 3/10/78). Américo Jacomino (1889?-1928), o Canhoto, foi um dos mestres do violão no início do século. Compositor fértil , virtuose do instrumento, tem ao menos uma música que todo o Brasil conhece: "Abismo de Rosas". Em homenagem ao 50º aniversário de seu falecimento, a Continental incubiu João Luiz Ferreti de produzir um belo álbum, agora nas lojas. Ferrete fez uma grande pesquisa sobre a vida, os tempos e a obra de Canhoto, convocou excelentes violinistas para gravarem 12 de suas melhores músicas e o resultado é um dos bons discos instrumentais aparecidos neste final de ano: o filho do homenageado, Luiz Américo, executa "Abismo de Rosa", Paulinho Nogueira, cedido pela Philips, comparece com "Brasileirita", Sebastião Tapajós, cedido pela RCA, toca "Sombras Que Vivem"; Celso Machado; que recentemente estreou em lp da Marcus Pereira; sola "Marcha a Triunfal Brasileira"; o falecido Dilermando Reis teve aproveitado no álbum a gravação de "Amor de Argentina". Os demais violinistas não são conhecidos, mas são excelente: Edson Lopes ("Reminiscências"), Antonio Rago ("Olhos Feiticeiros"), Roberto Ramos ("Lamentos"), Nelson Anderos ("Marcha dos Marinheiros"), José Franco ("Escuta Minh'Alma"), Nelson Cruz ("Arrependida") e Eraldo Souza ("Niterói").
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Nenhum
Música
38
22/10/1978

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