Hamlet, a força de um clássico
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 08 de dezembro de 1987
"Se algum dia em teu peito me
abrigaste
priva-te por um tempo de ventura
e respira cansado mais um pouco
neste mundo tão duro, para a todos
contares minha história".
("Hamlet", William Skakespeare)
Há 87 anos, quando o cinema ainda engatinhava, Clement Maurice transvertia a Diva Sarah Bernhardt (1844-1923) para interpretar o trágico Príncipe da Dinamarca na primeira das versões que se conhecem da peça de Shakespeare para o palco. Ao longo dos anos, nas relações do teatro shaksespeareano com o cinema, muitas versões de "Hamlet" aconteceram mas a que ficou como o momento mais importante foi, justamente, a de Laurence Olivier, realizada em 1947 - segunda entre as suas três personalíssimas, audaciosas e bem sucedidas visões para a tela do repertório do Bardo de Stratford-On-Avon: "Henrique V" em 1946 e, nove anos depois, a superprodução "Ricardo III".
A iniciativa da Globovídeo em lançar "Hamlet" em cópia selada e legendada, propiciou que sobrasse uma cópia para cinema, em 35mm, que, foi programado (cine Groff, 3 sessões, 14, 17 e 20 horas, até hoje em cartaz) inesperadamente.
Clássicos como "Hamlet" merecem, quando retornam em cópias novas, um tratamento especial, pois mais do que cult-movies se constituem em momentos maiores do cinema e verdadeiras antologias didáticas a quem se interessa, direta ou indiretamente, em conhecer o que de mais importante se produziu na cinematografia mundial.
Há 40 anos, vindo do êxito de sua adaptação ao cinema da tragédia "Henrique V", com fotografia em cores de Roberto Krasker e tendo no elenco os nomes de Robert Newton e Renée Acherson, Laurence Olivier, então no vigor de seus 39 anos (inglês de Oxford, nasceu a 22 de maio de 1907) já era um dos mais respeitados atores shakespereanos. J. Arthur Rank (1888-1959) destacava-se como o maior produtor do cinema inglês e assim deu condições para que Olivier, a exemplo de vários outros cineastas ingleses (David Lean, Carol Reed, Robert Hamer, Basil Dearden, entre outros) desenvolvessem projetos de alto nível artístico. E os filmes "Henrique V" e, especialmente, "Hamlet", se afiguraram como produções que fizeram o cinema inglês da pós-guerra obter respeito e consideração internacional: em 1946, "Henrique V" teve indicações ao Oscar de filme (perdendo para "Os Melhores Anos de Nossas Vidas"), ator (Olivier perdeu para Fredric March, também por "The best years..."), direção de arte (perdeu para "Ana e o Rei do Sião") e trilha sonora (W. Walten perdeu para Hugo Friedhofer por "Os MeIhores anos..."). Dois anos depois, entretanto, Olivier com "Hamlet", recebería os Oscars de melhor filme, ator, ganhando ainda indicações a direção, (perdeu para John Huston por "O Tesouro da Sierra Madre"), trilha sonora (William Walton perdeu para o também inglês Brian Easdale por "Os Sapatinhos Vermelhos"). Mas "Hamlet" ainda valeu os Oscars de guarda-roupa (Roger Furse, e dìreção de arte/cenografia (Roger Furse/Carmen Dillon).
"Hamlet" não foi, entretanto, uma versão bem comportada da peça de Shakespeare: Oliver eliminou alguns personagens - inclusive Fortimbrás, príncipe da Dinamarca além de Rosencratz e Guildenstern - e deu uma concepção psicanalítica a Hamlet, dominado pelo complexo de Édipo - inclusive com cenas de apaixonados (e nada implícitos) beijos do Príncipe e sua mãe, a rainha Gertrude (interpretada pela bela atriz Eileen Herlie). O historiador Georges Sadoul, em sua "Histoire Du Cinema Mondial", registrou que embora o filme tenha feito sucesso na Europa e EUA, foi recebido pelos ingleses com "severidade". "É verdade que o significado da tragédia foi restringido em virtude do confinamento do cenário, da supressão de personagens ou cenas capitais e da puerilidade de uma explicação psicanalítica", escreveu Sadoul, reconhecendo porém que "o esplendor do texto shakespereano e a interpretação de Laurence Olivier conferiram à obra certa grandeza e legitimaram plenamente o emprego de todas as possibilidades da câmara para uma estética teatral".
Apesar de muitos méritos, "Ricardo III", lançado somente em 1956, não chegaria a ter indicações ao Oscar, permanecendo, assim, "Hamlet" como o mais bem sucedido dos filmes dirigidos por Olivier (que, aliás, após "O Príncipe e a Corista", que fez em 1957, quase que de encomenda para a atriz-produtora Marilyn Monroe, só voltaria a direção em 1970, com uma adaptação de "As Três Irmãs", de Checov, inédita no Brasil).
"Hamlet" é, passados quatro décadas, um filme belo e fascinante. A fotografia de Desmond Dickinson (em preto-branco), conseguiu captar o clima brumoso e cinzento do castelo dinamarquês no qual se passa a ação. Praticamente não há cenários e os primeiros planos valorizam ainda mais as interpretações de um elenco primoroso reunido por Oliver - ele próprio, cabelos loiros, numa interpretação perfeita do angustiado príncipe da Dinamarca. Jean Simmons, então com 19 anos e em seu terceiro filme (anteriormente havia feito "Grandes Esperanças", de David Lean) está belíssima - e a seqüência de sua morte, com seu corpo boiando no rio, entre flores - fica na retina dos espectadores. Basil Sydney como o rei Cláudio, Felix Ayolmer como Polonius e especialmente Anthony Quayle como Marcellus e mesmo Peter Cushing (quem diria, anos depois, ficaria famoso na série de Drácula!) compõe admiravelmente os personagens shakespereanos.
"Hamlet" é daqueles filmes que não envelhecem com o tempo. Ao contrário, adquirem ainda maior dimensão e seriedade - principalmente se compararmos com os pastiches que foram feitos em torno do mesmo personagem - vivido na tela desde o russo Smouktounovsky (em 1964, na versão dirigida por Gregory Rozintsev) até o inglês Nicol Williamson, na última versão inglesa, em 1969, dirigida por Tony Richardson e na qual a cantora Marianne Faithfull era a doce Ofélia. Marianne, cá entre nós, preferimos mesmo como cantora, conforme mostra em seu recém-lançado elepê pela WEA. Ofélia, em cinema, foi mesmo Jean Simmons. E nunca mais haverá outra como ela...
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