O humor amargo de Joe, o crítico do "british way"
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 22 de fevereiro de 1989
"Eu não entendo porque as pessoas ficam chocadas. Se você for absolutamente prático - e eu acho que eu sou - um caixão é apenas uma caixa como qualquer outra. Alguém algum dia o chamou de caixão, e sempre que alguém o chamar assim, trará consigo toda sorte de associações".
(Joe Orton, 1933-1967)
É difícil não ficar chocado perante "O Amor Não Tem Sexo" (Cine Bristol, 5 sessões, hoje últimas exibições). Se as peças de Orton, encenadas em Londres a partir de 1964 (e quase simultaneamente atingindo outros países) também provocavam pela ironia e deboche, levando mais agressivamente as críticas que uma geração imediatamente anterior a sua (John Osborne, Harold Pinter), os Angry Young Men trouxeram no virar dos anos 50 para a dramaturgia britânica, agora, a transposição ao cinema de sua vida resultou num filme que, há dois anos, tem provocado discussões que o levaram a permanecer várias semanas em exibição nas cidades em que foi lançado. Com exceção de Curitiba, na qual menos de 800 espectadores animaram-se a assistir a "Prick Up Your Ears", fazendo com que, mesmo a contragosto, o exibidor Aleixo Zonari seja obrigado a retirá-lo de cartaz e antecipar a estréia do (excelente) "Bird" (1988, de Clint Eastwood) - a cinebiografia do saxofonista Charlie Parker (1920-1955), cujo lançamento deveria ter merecido melhor trabalho promocional (sob o risco de também fracassar).
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Em novembro de 1986, quando "Minha Querida Lavanderia" (My Beautiful Laundrette) levantava o Tucano de Ouro como o melhor filme do III FestRio, Stephen Frears, 58 anos, não pôde vir pois, em Londres, cuidava da participação de "Prick Up Your Ears" no Festival de Cannes, onde, daria o prêmio de melhor ator a Alfred Molina. Em 1987, antes mesmo de ser lançado em Londres, outro longa-metragem de Frears, "Sammy and Rose Get Laid", tinha uma exibição hors-concours no FestRio. Tanto "My Beautiful Laudrette" como "Sammy and Rose..." misturavam questões ligadas a imigrantes paquistaneses em Londres, fortes doses de homossexualismo e uma visão absolutamente cáustica de Londres deste final de década. A sujeira e a violência das ruas, o crescimento do homossexualismo, a quebra de qualquer valor que, no passado, pudesse orgulhar "o império no qual o sol nunca se punha" ganharam em Frears imagens dilacerantes. Em "Minha Querida Lavanderia" (realizado originalmente para a televisão, já a disposição em vídeo selado no Brasil) a trama centra-se sobre as relações homossexuais entre dois jovens - um paquistanês, sobrinho de um dirigente de uma organização criminosa, com um típico jovem inglês. Em "Sammy and Rose Get Laid", Londres praticamente explode em chamas nas ruas dos bairros habitados pelos imigrantes paquistaneses - e a violência (mais o sexo, quase explícito em muitas seqüências) fez o filme sofrer restrições - inclusive na divulgação de seu título de duplo sentido. "Prick Up Your Ears" também é um malicioso trocadilho a partir de "pick up" - no qual o "r" transforma a palavra no sentido pornográfico.
O último filme de Frears - a refilmagem do romance epistolar "As Ligações Perigosas" de (Pierre Ambroise Françoise) Chanderlos de Laclos (1741-1803) - é o atual must da temporada internacional: sucesso nos EUA, escolhido para abrir (10/2) o 30o. Festival de Cinema de Berlim, teve cinco importantes indicações para o Oscar-89: filme, atriz (Glenn Close), atriz coadjuvante (Michelle Pfeifer), roteiro adaptado e trilha sonora (George Fenton). Portanto, para um cineasta que até há pouco era totalmente desconhecido no Brasil, Frears está hoje muito bem cotado. Mas nem mesmo assim seu "O Amor Não Tem Sexo" não atraiu o público que se esperava - sequer a comunidade gay (que tem um percentual de pretensões intelectuais bastante numeroso) ou a classe teatral.
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Em forma de flashback, o filme constitui a vida de Joe (John Kingley) Orton (Leicester, 1/1/1933 - Londres 9/8/1967), filho de um modesto jardineiro (William) e de uma dona de casa prosaica (Elsie). A sua trajetória - aluno aplicado, ganhou uma bolsa para o Royal Academy of Dramatic Art (RADA, onde conheceu o calvo paranóico Kenneth Halliwell (1926-1967), e com quem viria a morar um mês depois de sua chegada a Londres - o relacionamento começou exatamente no dia em que a Rainha Elisabeth II era coroada - numa visão irônica em que as imagens da solenidade, apresentadas num pré-diluviano aparelho de TV, enquanto eles têm sua primeira relação sexual. Durante 15 anos, Joe e Ken tiveram uma relação de ódio e amor, encerrados em uma semi-miséria quase permanente, escrevendo contos e romances (com reconhecida influência de Ronald Fairbank - 1866/1926), rejeitados um após o outro pelos editores. Foi na prisão - onde passaram seis meses em 1963, por terem mutilado mais de cem livros das bibliotecas municipais para escrever em suas páginas ou para fazer com as ilustrações colagens para decorar as paredes do apartamento - que Orton começou a escrever sua primeira peça ("The Rufian on the Staircase", que a BBC transmitiria no ano seguinte). O episódio da prisão é o único ponto que, no roteiro de Alan Bennet (baseado na biografia de Joe, escrita por John Lahr), não fica muito claro - pois, a rigor, todo o filme é linear.
O filme consegue captar o clima da Swinging London dos anos 60 (que continua a ter um clássico "Blow Up"/Depois Daquele Beijo, 66, de Michelangelo Antonioni) e vai a fundo nas relações neurótico-sexuais estabelecidas entre Joe e Ken. Embora talentoso (em Leicester, já fazia teatro amador), foi da convivência com Ken Halliwell, 7 anos mais velho, de maior cultura, que adquiriu o embasamento teórico, que possibilitaria explodir a partir de 1964 como o mais promissor dramaturgo de sua geração. Ironicamente, Ken foi colocado no anonimato, provocando ciúmes e frustrações, o que o levaria a, desesperado, assassiná-lo, a marteladas, na noite de 9/8/67, suicidando-se a seguir, ingerindo 22 comprimidos de Nembutal.
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Frears é um cineasta visceral. Seus filmes são objetivos e diretos e em "Prick Up Your Ears" conteve-se até nas seqüências em que Joe Orton, no auge de seu desvario sexual, após receber o prêmio como melhor autor em 1967, vai aos mictórios públicos buscar companheiros sexuais (uma cena chocante que lembra alguns momentos de "Romance", do ponta-grossense Sérgio Bianchi, por sinal o único filme brasileiro participando, hors concours, no Festival de Berlim).
Uma envelhecida Vanessa Redgrave interpreta Peggy Hamsey, a compreensiva agente e amiga de Orton, que muito colaborou para o seu sucesso (o filme não conta, mas é bom esclarescer: Peggy foi esposa do dramaturgo romeno-francês Eugene Ionesco) - ao lado do biógrafo John Lahr, fio condutor da história. Repleto de citações - do poeta T.S. Elliot (1888-1965) a Brian Epstein (1934-1967), empresário dos Beatles, "O Amor Não Tem Sexo" perde, muito, para quem não esteja informado sobre o universo que retrata. Epstein, aliás, chocou-se com o roteiro que Joe Orton escreveu para um filme sobre os Beatles - no qual os jovens ídolos dos anos 60 tinham uma conotação homossexual. O projeto, obviamente, foi recusado - mas publicado postumamente, o roteiro está nos planos do curitibano Marcelo Marchioro para se transformar numa peça teatral.
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Gary Oldman - visto como o dramático Sid Vicious, no filme de Alex North, tem uma atuação esplêndida - embora a de Alfred Molina, como Kenneth Halliwell, tenha merecido a premiação em Cannes (Molina apareceu em curtos papéis em "Os Caçadores da Arca Perdida" e "O Feitiço de Áquila"). Vanessa Redgrave tem a dignidade da maior atriz inglesa de nossa época e Wallace Shawn compõe bem o biógrafo John Lahr. Fotografado basicamente em interiores, as imagens de Olivier Stapleton acentuam os contrastes e a música de Stanley Myers - utilizando alguns sucessos da época - é perfeita.
Amargo, cruel, chocante, "O Amor Não Tem Sexo" é um filme para ser visto por platéias que se interessam em conhecer os bastidores da vida artística contemporânea. Uma frase de Joe Orton, autor visceralmente anarquista, pode sintetizar este filme sobre a sua vida:
- Eu acho as pessoas terrivelmente maldosas mas irresistivelmente engraçadas.
LEGENDA FOTO - Joe Orton (Gary Oldman) e Kenneth Halliwell (Alfred Molina, melhor ator do Festival de Cannes-87): o casal dramático de "O Amor Não Tem Sexo", um filme corajoso e que tem hoje suas últimas exibições no Bristol.
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