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Aramis

As ternas imagens da ingênua Maria

Ao contrário de Andrei Tarkovsky, o premiado diretor de "O Sacrifício" (Palma de Ouro, Cannes-86; breve lançamento em Curitiba e já à disposição em vídeo), Andrei Konchalovsky não chega a ser um cineasta russo dissidente. Tarkovsky, diretor de filmes tão notáveis como herméticos ("Solaris", "Andre Ralov") morreu praticamente no exílio, em Paris, a 29 de dezembro último. Konchalovsky vive nos Estados Unidos, tendo encontrado nos mais ativos produtores desta década - Menahem Golan e Yoram Globus - condições de realizar filmes de grandes orçamentos. Em 1984 fez "Os Amantes de Maria" - que concorreu no festival de Veneza. Em 1985/86, com um roteiro do japonês Akira Kurosawa, mostrou seu vigor em "O Expresso do Inferno" (The Runaway Train), que valeu a John Voight a indicação para o Oscar de melhor ator perdendo para William Hurt, por "O Beijo da Mulher Aranha"). Ainda para a Cannon, Konchalovsky já realizou "Investigation", com Al Pacino, com roteiro de Paul Schrader - o mesmo screenwriter que Hector Babenco convocou para roteirizar o texto do argentino Manuel Puig em "O Beijo da Mulher Aranha". Nesta semana, nos estertores do cine Vitória (que cerra suas portas dia 28, quarta-feira) - os espectadores podem conhecer "Maria's Lovers", o primeiro filme americano de Konchalovsky, Dirigida por um russo, fotografado por um espanhol (Juan Ruiz Anchia), com uma atriz alemã (Nastassja Kinski), produzida por israelitas, é uma realização multinacional. Esta salada mista, que poderia comprometer o resultado, não impede que "Os Amantes de Maria" seja um filme belíssimo, revelando e analisando sentimentos e relações entre seres humanos - com um clima de pós-guerra, lembrando obras como "Os melhores Anos de Nossas Vidas" (1946, de William Wyller) ou "Em Cada Coração Um Pecado" (Kings Row, 42, de Sam Wood) - que fizeram abordagens de homens & sentimentos durante (e logo depois) da guerra. De uma forma inteligente, Konchalovsky recorreu a cenas do documentário "Let There Be Light", realizado em 1946 por John Huston (e nunca exibido) na apresentação dos créditos. São imagens de soldados sofrendo os traumas da guerra, com abalos psicológicos - e cuja divulgação o governo americano não concordou, "por não ser compatível com a política do vitorioso otimista", assumida após a II Guerra pelos Estados Unidos. Ao voltar a sua pequena Brownsville, na Pensilvânia, em 1946, o soldado Ivan (John Savage) tem a imagem de sua namoradinha de infância, Maria (Nastassja Kinski), que, durante os meses de campo de concentração, o salvaram da loucura. A encontra com novo namorado, o capitão Al (Vincent Pano, um novo ator em ascensão), mas o amor antigo é mais forte e eles se casam. Só que a paixão e idealização tão grande que sentiu por Maria o faz inibir-se sexualmente e não consumar o relacionamento. Realiza-se com uma prostituta (Anita Morris), tem uma crise que o leva a abandonar a esposa e refugiar-se num obscuro emprego num matadouro em outra cidade, enquanto Maria, virgem e apaixonada, só se entrega a um errante cantor, Clarence Butts (Keith Carradine), para um único momento de amor - que, porém a deixaria grávida. Um melodrama aparentemente convencional, mas enriquecido por uma delicadeza de tratamento, inteligente roteiro (desenvolvido a dez mãos) e que mostrando uma crise conjugal - o filme tem um título grosseiro: Maria é antes o símbolo da pureza do que da amante, embora desejada por muitos homens, inclusive pelo sogro (marcante atuação de Robert Mitchum). Edmar Pereira, crítico sutil, escreveu que o estilo de Konchalovsky pode lembrar Antonioni por sua lentidão, Buñuel por certas intimidades quase escatológicas ou Robert Altman por sua empolgante modernidade, à qual não faltam registros de amarga ironia. Konchalovsky não perde nunca o controle sobre o que quer narrar (o que se pode observar também em "Expresso Para o Inferno", exibido, aliás, há poucas semanas no mesmo cine Vitória). Dá-se, inclusive ao luxo de oferecer pistas falsas à platéia, mudando suas expectativas de início para voltar-se aos sentimentos mais profundos. Mostra-se um inventivo criador de imagens (como na magnífica seqüência do casamento, todo fotografado entre os vagões de um trem em movimento) e um admirável tradutor em imagem de estudos de espírito de dor e de abandono. Como na representação surrealista do amor entre Maria e Ivan através de uma velha cadeira vazia no topo de uma colina; na atmosfera de sensualidade quase insuportável que permeia a visita do sogro à casa de Maria; na sua visita, já não virgem e grávida, ao marido e no momento em que este tem, no bar, como amigos e prostitutas, a revelação de que outro - o outsider cantor - tomou, pelo menos por um momento decisivo, o seu lugar. A fotografia de Juan Ruiz Anchia é belíssima, compondo os cenários da pequena Brownsville, sua população com imigrantes iugoslavos, a paisagem pastoral do rio e da colina - com a cadeira-símbolo de um amor. A trilha sonora, aproveitando standards dos anos 40, tem um tema original, "Maria's Eyes", música de Keith Carradine (ótimo cantor e compositor, que inclusive ganhou o Oscar-75, com "I'm Easy", do filme "Nashville") e letra do próprio Konchalovsky, que tão bem se ajusta no clima. "Os Amantes de Maria" é daqueles filmes sinceros, capturando uma outra época do cinema, com sentimentos e ternuras que dão ao espectador, ao deixar a sala, uma profunda sensação de romantismo - inclusive um happy end, como nos tempos ingênuos (mas admiráveis) do cinema que hoje desaparece, assim como salas como a Vitória, inaugurada há 24 anos, também chegam ao final, nestas melancólicas semanas de sua últimas sessões. LEGENDA FOTO - Nastassja Kinski e John Savage em "Os Amantes de Maria": um belo filme no cine Vitória.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
13
21/01/1987

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