A universalidade de Allen e sua "Aldeia"
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 05 de junho de 1990
Na proporção em que sua obra vem adquirindo uma importância cada vez maior, deixando há muito apenas a imagem de cronista visual do american way of life, o cinema de Woody Allen passa a atingir um nível que, ao espectador deste final de século, tem que ser visto e entendido numa extensão bem mais ampla do que o simples entretenimento.
Embora sabendo sempre conduzir com perfeição as histórias, não abrindo nunca mão do roteiro e exercendo um controle total em suas produções, cercado do que existe de melhor em termos de equipe (neste "Crimes e Pecados" volta a trabalhar com o fotógrafo sueco Sven Nykvist, o favorito também de seu ídolo Bergman), Allen não deixa de fazer um cinema extremamente pessoal. Talvez por isso mesmo é que até agora, com poucas exceções ("A Rosa Púrpura do Cairo", 1985), tomando-se sua regularíssima produção (média de quase dois filmes por ano a partir do final da década de 70) seus filmes atingem um público reduzido no Brasil. Há também divisões entre o Allen cômico e o Allen sério. Isto porque mesmo em seus filmes mais descontraídos sempre houve o toque de observador arguto, de crítico social e, especialmente de uma auto-análise dos medos, riscos, frustrações (amorosas, profissionais e físicas) nos personagens por ele criados (o hipocondríaco; a busca de realização profissional; a rejeição amorosa etc.). Mesmo num episódio como "Édipo Arrasado" de "Contos de Nova York" (Cine Luz, 5 sessões), com um humor surrealista, não falta o Allen reflexivo, comportando as mais diferentes - e necessárias - análises, que não se esgotam, absolutamente num simples review jornalístico.
Em "Crimes e Castigos [Pecados]", Allen ao desenvolver duas estórias que se entrecruzam por relações de parentescos de alguns personagens, evidencia mais uma vez o núcleo família que tem marcado não só muitos de seus filmes ("Hannah...", "Interiores", "Setembro", só para citar alguns), mas que se observa como uma tendência cada vez mais presente em muitas produções de primeira categoria - como nesta mesma semana pode ser conferido em outro filme excelente em exibição _ "Um Toque de Infidelidade" (Cousins, 89, de Joel Schumacher), refilmagem de "Primo-prima" (1975, de Jean-Charles Techella) em exibição no Cine Condor.
Na metalinguagem que marcam seus filmes - com personagens ligados a show business, teatro ("Broadway Danny Rose", 84; "Memórias", 80); cinema ("A Rosa Púrpura..."), em "Crimes and Misdmeanors", Allen usa um recurso inteligentíssimo para fazer algumas citações cinematográficas. Como cinéfilo apaixonado, o personagem Stern leva sua sobrinha adolescente (Jenny Nichols) a um cinema da Bleeker Street onde está sendo exibida uma comédia na qual Mery Martin (Texas, 1/12/1913) e Dick Powell (1904-1963) vivem em "Caçadores de Maridos" (Happy Go Luck, 1943, de Curtis Bernhardt - 1899/1981), uma cena que se identifica à seqüência anterior - em que a amante, Dolores Paely (Anjelica Huston), ameaça a Judah (Landau) se ele não abandonar a esposa Miriam (Claire Bloom).
Ao lado de Halley Reed (Mia Farrow, a produtora da série de televisão por quem se apaixona, Stern vai aos matinês ou curte numa cópia de 16mm, o musical dos musicais - "Cantando na Chuva" (Singing in the rain, 52, de Stanley Donen). Outra referência ao musical é o fragmento em que Betty Hutton em "Bonita e Valente" (Annie Get your Gun, 50, de George Sidney).
Quando Halley Reed o abandona e vai para Londres, de onda volta quatro meses depois, já como amante de Lester (Alda) - e fazendo o perdedor Cliff Stern (Allen) ter o choque final que o arrasa, a passagem do tempo é marcada por fragmentos de um filme noir da Warner Brothers - "Alma Torturada" (This Fundação For Hire), 1942, de Frank Tuttle (1892-1963).
Os clips cinematográficos (que se inserem na narrativa) se compõem a magnífica trilha sonora, como sempre também uma escolha pessoal de Allen, com um privilégio a temas jazzísticos, especialmente standards dos anos 30/40, em gravações originais.
"Crimes e Pecados" não é "mais um filme" de Allen. É o filme. O melhor até chegar o próximo. Pois este gênio parece que não dá sinais de cansaço. Ainda bem, para quem ama o cinema...
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