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Aramis

"Sonhos", um hino ecológico ao planeta

O fato é raro, raríssimo. Norberto Castilho, hoje um dos mais bem sucedidos empresários de propaganda no Paraná, mas que em sua juventude era atuante crítico de cinema (e música) no florescente "O Estado do Paraná", costuma contar que quando da estréia de "Matar ou Morrer" (High Noon, 1951, de Fred Zinnemann) no então luxuoso Cine Avenida, na primeira sessão da noite de estréia (quinta-feira), ao final a platéia aplaudiu o solitário xerife Joe Kane (Gary Cooper, numa interpretação que lhe valeria o Oscar de melhor ator) enfrenta sozinho a quadrilha de assassinos - sem que ninguém da comunidade o auxiliasse (uma analogia ao macartismo da época). Domingo passado, na primeira sessão do Cinema I, algo parecido repetiu-se: por três vezes, aplausos - isolados, é verdade - mas espontâneos e vibrantes - mostraram o entusiasmo do público por "Sonhos" (1990, de Akira Kurosawa), ali em exibição. Aplausos, que ele merece! Que Akira, aos 81 anos, é o maior nome do cinema japonês, não há a menor dúvida. O Japão lhe deve a projeção de sua arte cinematográfica, pois em seus 46 anos de cinema, 29 filmes, dezenas de roteiros, o Leão de Ouro no Festival de Veneza e a Palma de Ouro em Cannes, além do Oscar especial que recebeu no ano passado, Kurosawa fez com que o distante e difícil cinema nipônico chegasse às mais diferentes platéias. Se durante décadas os seus filmes - como o da maior parte de realizadores japoneses - permanecia restrita a comunidades nipo-brasileiras e uma elite de cinéfilos (ainda restritos), hoje ele - como outros gênios contemporâneos das imagens (o sueco Ingmar Bergman, o italiano Federico Fellini, o americano Woody Allen), faz com que imensas faixas aproximem-se de seus filmes. E de toda sua imensa filmografia - grande parte conhecida dos que se interessam, graças a mostras e retrospectivas habituais (além do lançamento regular de muitos títulos), sem dúvida que "Sonhos" é o mais lindo, lírico e absorvente de seus filmes. Só um artista e pensador em sua plena maturidade poderia conceber uma obra em que unisse a reflexão, a visão onírica de um território tão imenso como o dos sonhos - como um verdadeiro hino em favor da humanidade. Embora se espere que Akira, com auxílio de seus amigos Spielberg, Coppola e Lucas (que têm apoiado seus projetos mais recentes, para os quais - incrível! - não encontra financiamento no Japão), realize ainda mais algumas obras, com "Sonhos" ele nos dá seu testamento definitivo. Um filme que fala ao olhar e ao coração - com a mensagem mais necessária de ser transmitida em nossos dias - um grito desesperado de alerta ao homem para não destruir o seu planeta. No primeiro (dos oito) capítulos dos "sonhos" que, autonomamente - mas com uma integração perfeita - há as grandes causas pelas quais se tenta apelar: o amor, a natureza, o entendimento entre as pessoas, os riscos da guerra nuclear e, sobretudo, a lição e a experiência de quem sabe ver o mundo com o olhar simples do centenário aldeão que, no final - no profundo "O Povoado dos Moinhos" - deixa uma lição para ser reflexionada por todos. Embora todos os sonhos sejam perfeitos em sua concepção, em algum momento a emoção é ainda maior. No "Pomar dos Pessegueiros" - a utilização de toda uma fantasia calcada na melhor tradição teatral japonesa, o deslumbramento justifica as palmas como se ouviram em sessão dominical no Cinema I. Plasticamente, "Corvos" é um dos momentos de maior perfeição obtidos no cinema. Juntamente revisitando um gênio que, até hoje, tem sido visto com emoção por muitos cineastas - Vincent Van Gogh - Akira consegue ser único. Há 35 anos, Vicent Van Gogh era vivido por Kirk Douglas em "Sede de Viver", de Vincent Minelli (Anthony Quinn, aparecendo apenas 8 minutos como Paul Gauguin, ganhou o Oscar de melhor coadjuvante). Mais recentemente, outro americano, Robert Altman ("Nashville", "Cerimônia de Casamento"), inspirou-se na correspondência de Van Gogh ao seu irmão para "Vincent e Theo", com Tim Roth e Paul Rhys (inédito no Brasil). Kurosawa, que é também um artista plástico (e que segundo algumas de suas biografias chegou até a tentar o suicídio pela falta de reconhecimento pelo seu trabalho), dedicou o mais plasticamente belo dos seus "Sonhos" a uma homenagem ao pintor holandês. Assim, o sexto sonho do filme chama-se "Corvos". O personagem "Eu", alter-ego de Kurosawa, está num museu diante de obras de Van Gogh, entre eles "Noite Estrelada", "Campo de Trigo com Corvos", "Meu Quarto" e "Auto-Retrato". Aproxima-se dos quadros, transporta-se e reaparece em Auvers-sur-Oise, no Sul da França, à procura do pintor. Lavadeiras, retratadas por Van Gogh ao lado da ponte onde passa uma carruagem, dizem que o louco é perigoso ("faz poucos dias que deixou o hospital"), mas apontam ("acabou de passar por ali"). "Eu" corre ao encontro do mestre (interpretado pelo cineasta Martin Scorcese, outro fã de Kurosawa). Van Gogh explica que não pode parar para conversar, dizendo: - "O sol me compele a pintar, me impulsiona como um trem". Antes de partir, conta que cortou uma orelha, pois não conseguia retratá-la em seu último auto-retrato. Tomado pelo delírio (e com efeitos especiais da Light and Magic, de George Lucas), "Eu" passeia pelas ruas, casas, campos pintados por Van Gogh. A plasticidade e a emoção captadas nas pinceladas impressionistas se ampliam no cinema. Neste cenário cromático (recriado em estúdios e locações no Japão), há uma verdadeira aula de cinema (como todo o filme) e imagens. Só por ela, já valeria ver e rever o filme na tela ampla do Cinema I (existe vídeo selado, da Warner, à disposição, mas não se recomenda: jamais traduziria na telinha a emoção de uma obra prima como esta). "Sonhos", em cada um de seus segmentos, pode justificar longos ensaios e apreciações. O melhor, entretanto, é assisti-lo enquanto está em exibição. De uma coisa tenho certeza: não sei ainda quais serão os outros nove melhores filmes lançados em 1991 em Curitiba - mas o de Akira Kurosawa estará entre os primeiros. LEGENDA FOTO 1 - "Eu" de Kurosawa diante de um quadro de Van Gogh: a mais bela homenagem ao mestre pintor. LEGENDA FOTO 2 - Akira Kurosawa, 81 anos - a serem completados no próximo dia 23 de março - durante as filmagens de "Sonhos". LEGENDA FOTO 3 - Desenho do cineasta para cada seqüência: aqui, o cão do antibelicista, episódio "O Túnel".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Nenhum
10/03/1991

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