Augusto redescobriu a nossa guerra da carne
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 25 de junho de 1987
As voltas que a história e a política dão, fazem com que um livro lançado há exatamente dois meses por uma editora da cidade - a Gralha Azul -, adquiria, extrema atualidade. "História; Mulher", do jornalista Luiz Augusto Moraes, ao enfocar fatos verídicos ocorridos na provinciana Curitiba de 35 anos passados - e que estavam totalmente esquecidos da história oficial - mostra que os problemas sociais e econômicos continuam os mesmos. E a leitura das 90 páginas deste romance - criado a partir de um pano de fundo real - chegam até a emocionar pela atualidade de alguns fatos.
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Gaúcho, de Porto Alegre, 33 anos, casado com uma curitibana, uma filha, vivência no Recife e, há 4 anos fixado em Curitiba, Luiz Augusto Moraes decidiu, em fins de 1985, escrever um livro sobre a mulher e a sociedade, estimulado pelo discurso feminista da deputada Rute Escobar e as discussões em torno do Ano Internacional da Mulher. Com experiências na ficção ("O Início pelo Fim", 1977; "Semeando Letras", 1979), literatura infantil ("A Revolta dos Pêssegos Vermelhos", 82 e "O Menino Que Era Dois", 85), teatro "O Conto da Abolição", 83 e "Consciência Negro", 84), e um ensaio sobre "A Ideologia da Microempresa" (1986), resultado de seu trabalho profissional como assessor de imprensa da Federação das Microempresas do Paraná, Luiz Augusto Moraes mergulhou numa pesquisa para encontrar, no início dos anos 50, elementos que pudessem emoldurar a luta da mulher no campo social.
Na seção de Documentação Paranaense da Biblioteca Pública, entre as amarelecidas coleções de "A Tarde", "Diário da Tarde" e "Gazeta do Povo", achou o tema que buscava: entre 17 e 21 de fevereiro de 1952, notícias sobre um movimento espontâneo desencadeado por donas-de-casa contra a carestia, especialmente no preço da arne. Ou seja, há três décadas, a inflação e a exploração dos então chamados "tubarões" provoca protestos - e reações, como, há 5 anos passados, levaria a professora e socióloga Maria de Lordes Montenegro (ex-presidenta da Frei, ex-candidata à Constituinte e atual secretária municipal do Bem-Estar Social), a liderar um movimento também de boicote aos açougues - que teve repercussão nacional.
O curioso é que os fatos ocorridos em fevereiro de 1952 - e que são incluídos, em transcrições dos jornais, dentro do romance de Luiz Augusto Moraes, permaneceram, até agora, esquecidos. "Até os professores do Departamento de História surpreenderam-se com o que recontei", diz o autor.
Se a "guerra do pente", ocorrida no final de 1958 - e que só foi encerrada quando o Exército saiu às ruas - ganhou, há mais de um ano, o documentário-ficção do cineasta Palito, agora é o movimento das donas-de-casa, contra a carestia, em 1952, que tem um registro em forma de livro. Luiz Augusto admite que não pretendeu, em absoluto, esgotar esse assunto, necessário de ter pesquisas maiores.
- "Apenas cito alguns registros feitos pela imprensa, emoldurando uma ação ficcional".
"A Tarde", jornal que chegou a ter grande importância na imprensa paranaense, noticiava em 17/02/52, em sua primeira página, que "ante a iniperância absoluta das Comissões de Preços e das Delegacias de Economia Popular para combater a constante elevação do custo de vida, o próprio povo viu-se na contigência de boicotar os exploradores como única arma à sua disposição. Resolveram assim algumas valorosas donas-de-casa, lançar a idéia de uma "greve branca" de carne contra os traficantes da fome, para o que apelaram para a imprensa e as estações de rádio. Numa demonstração de aprimorada educação cívica, iniciou a população um movimento pacífico digno dos maiores encômios".
No dia seguinte, "A Tarde" voltava a elogiar a "praticamente vitoriosa campanha das donas-de-casa". No dia 20 na Avenida João Pessoa (ou seja em plena "Boca Maldita", que ganharia este nome quatro anos depois), era realizado um comício contra a carestia, promovido pela UPE, UPES e Federação das Mulheres do Paraná. "A Tarde", denunciava, também que agentes da Polícia Civil se infiltravam nas reuniões da comissão central da greve.
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As manifestações explodiram no dia 19, conforme relatava a mesma "A Tarde" no dia seguinte: "O movimento popular foi iniciado no Cajuru e na zona do Prado onde os açougues foram invadidos e depredados, sendo as carnes neles expostas atiradas à rua. Vários açougues ante a aproximação da massa popular, cerraram suas portas porém estas foram arrebentadas. Iradas com a atitude da polícia, várias mulheres, apanhando carnes espalhadas pela Praça Zacarias, lançaram-nas sobre as autoridades policiais que procuravam acalmar os ânimos das mais exaltadas. Armados de facas e cassetetes, funcionários do açougue da firma Garmatter procuraram defender o aludido estabelecimento. A polícia, porém, interveio e impediu que o incidente tivesse trágicas conseqüências. Em vários açougues ainda havia ao anoitecer, pedaços de garrafas que continham combustível e que era destinado a incendiar as carnes. Na Praça Tiradentes, nas imediações das Casas Pernambucanas, um grupo de guardas participou de uma rixa com populares, havendo trocas de socos e cacetadas".
O redator do "Diário da Tarde", comentando o assunto, lamentava "certos atos da polícia, que investiu contra mulheres, abusando um tanto da violência".
Houve prisões pela DOPS. A "Gazeta do Povo", também no dia 20 de fevereiro, comentava o fato e contava que o estopim para a explosão popular foi provocado por uma açougueiro. O fato merece ser transcrito, conforme a publicação: "Contam que uma pobre mulher, ao pedir um cruzeiro de fígado, foi encarnecida pela magarefe.
- Então - teria dito ele -, chiaram! E vai custar mais caro ainda, povo idiota.
Brilharam os olhos daquela humilde cidadã que gastava o último dinheiro para fazer alguma coisa capaz de aliviar a fome que, de há muito, ronda seu lar. Lembrou do marido exausto ao chegar em casa e encontrar mais um ralo feijão, misturado com couve, colhida no quintal, à margem da valeta, que serve de esgoto e abriga o tifo e outras doenças. Estremeceu à lembrança dos filhinhos, soltos à mercê da fúria incontrolável dos monstros movidos à gasolina.
Mesmo sem saber porque, dando vazão a um sentimento que ignorava existir, em seu íntimo, aquela mulher esqueceu o cutelo com que se armaram o açougueiro e lançou ao rosto daquele homem, salpicado de sangue e enodeado de sujeira, o miserável pedaço de fígado e foi assim que começou toda a história".
A tensão continuou nos dias seguintes. "A Tarde", denunciava no dia 21, que "a polícia do governador Bento Munhoz da Rocha Neto", havia espancado muitas pessoas, acrescentando: "O povo deseja o abaixamento do preço da carne, cujo trust explorador está nas mãos de pessoas diretamente ligadas ao Palácio São Francisco e o homem que diz estar "melhorando" o Paraná, responde às reivindicações do povo a pata de cavalo e empladeiradas de chanfalhos".
"Gazeta do Povo", na oposição a Munhoz da Rocha, também registrava longamente os fatos, dizendo que "Curitiba sofreu ontem, pela atitude criminosa da Polícia do Estado, espaldeirando o povo, um dos mais graves atentados à sua civilização". No registro da "Gazeta", havia mais detalhes: a pancadaria aconteceu na Avenida João Pessoa (hoje, oficialmente Luiz Xavier), com a PM investindo contra o "povo que estava em frente do Braz Hotel". Também os espectadores que saíram do antigo Cine-Teatro Palácio, atônitos, acabaram sendo espancados, inclusive "agredidos senhoras, crianças e pessoas de idade, que não sabiam onde esconder-se para fugir às bordoadas..."
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Em nota oficial, do dia 20 de fevereiro, o então chefe da Polícia, Albino Silva (que mais tarde chegaria a general e à Presidência da Petrobrás, no governo João Goulart) acusava o movimento de ser comunista e proibia novas reuniões públicas. Num dos parágrafos, dizia o então coronel Albino Silva: "Que já não mais surpreendem ninguém, os métodos paradoxais utilizados pelos comunistas em suas campanhas de agitação, os quais, transvestidos em defensores das causas justas, buscam, entretanto, a sua ação criminosa e impatriótica, e para isso abusam da boa fé e se apropriam dos motivos de reivindicações que mais de perto falam ao coração do povo, no afã de arrastá-lo e compartilhar de seus propósitos inconfessáveis" (sic).
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