Ciranda de amores frustrados
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 02 de outubro de 1988
João amava Teresa que amava
Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim
que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa
para o convento
Raimundo morreu de desastre, Maria
ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com
J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
("Quadrilha", Carlos Drummond de Andrade)
Dez anos separam "Interiores" (1978) de "Setembro". Mas é como se o tempo não tivesse passado. Um mergulho nos sentimentos, nas emoções de personagens - gente simples, do quotidiano. Que vive, sofre, ama, se desespera, mas acaba aceitando - o que fazer? - os dias numerados, por mais cinzentos que sejam.
Ah! Os críticos! Profissionais ou amadores - este o próprio público em seu direito de gostar ou não gostar, parecem não perdoar a sensibilidade múltipla. Woody Allen, 51 anos, é o humor judaico-novaiorquino! Então dá-lhe riso para a galera! Proibido ter sentimentos mais delicados. E profundos. Só assim se explica tanta imbecilidade, tanta falta de compreensão para com um filme-cristal, um sopro (novo) na sensibilidade como "Setembro" (Cine Luz, 5 sessões, 3 semanas).
Lógico, não é um filme primaveril, colorido, up! Mais ainda do que "Interiores" - que se permitia algumas seqüências externas, numa praia gelada, deserta, "September" é assumidamente claustrofóbico em sua ação interior - janelas fechadas, nenhuma seqüência externa (algumas feitas para fora acabaram sendo cortadas na versão final). Como em "A Família" (1986, de Ettore Scola), toda a ação concentrada no espaço de uma casa. Só que enquanto "La Famiglia" estendia-se por 8 décadas, dezenas de personagens, aqui há apenas meia dúzia de gente que sofre e ama, num tempo limitado: um fim de semana, num final de agosto.
Woody Allen não se permite outras alternativas: a indicação existencial, que pode ser feita com um humor (amargo, sempre, reconheça-se) em trabalhos soft como "Annie Hall" (Noivo Neurótico, Noiva Nervosa), no alter-ego Alvy Singer, no Isaac Davis que só aceita a sua "Manhattan" (1979) em imagens branco e preto ao som da música de Gershwin ou no Mickey de "Hannah e suas Irmãs" (1986) - para só ficar em três momentos da galeria alleniana em uma década na qual se firmou como o mais pessoal (e importante) dos realizadores americanos - e do próprio cinema contemporâneo.
Para entender melhor "Setembro" é preciso viajar dez anos ao passado e (re)aprender o universo de Flyn (Kristin Griffith), Joey (Marybeth Hurt), Frederik (Richard Johnson), Renata (Diane Keaton), Arthur (E.G. Marshal), Eve (Geraldine Page), Pearl (Maureen Stapleton) e Mike (Sam Waterson), no confinamento afetivo-espiritual de "Interiores", quando, pela primeira vez, assumindo apenas a condição de roteirista-diretor - e com a mais intimista das fotografias (Gordon Willis) se recusou a qualquer aproximação com a imagem de humor que vinha marcando sua filmografia: "Um Assaltante Bem Trapalhão/Take the Money and Run", 1969; "Bananas", 1971; "Tudo o que Você Sempre Quis Saber sobre o Sexo", 1971; "O Dorminhoco", 1973 e "A Última Noite de Boris Grushenko", 1975.
Era o Allen, assumidamente bergmaniano, que fazia um filme huis clos, com uma afetiva carga que não envergonharia o ídolo sueco - a quem voltaria a homenagear em 1982 ("Sonhos Eróticos numa Noite de Verão", simbiose entre Shakespeare e "Os Sorrisos de uma Noite de Amor", 55, Bergman).
Há duas formas de se entregar ao fascínio de Allen: simplesmente liberar as emoções e encontrar as veredas da empatia humana (e universal) que consegue colocar em duas imagens ou, racionalmente, tentar estabelecer o puzzle que constrói, talvez com personagens que se repetem (mas Fellini e Bergman não fazem isso também?) que, entretanto, chegam sempre com aquela carga imensa de emoção - mesmo quando revestidos de um humor contemporâneo, naturalmente nova-iorquino - cidade amada da qual Allen, com suas carradas de razões, recusa-se a sair - mesmo para receber o Oscar - como fez em 1978 (e repetiu há dois anos nas indicações que "Hannah" obteve).
É fácil, para quem está predisposto, apontar falhas e defeitos em "Setembro": "arrebanha um grupo de almas problemáticas numa casa e faz com que umas façam as outras subirem pelas paredes" disse um crítico. Outros também falaram mal do filme - pois afinal, após "A Rosa Púrpura do Cairo", "Hannah" e "A Era do Rádio" (1987), havia a necessidade de malhar Allen - que, como sempre, sem dar a menor importância ao que dissessem, já estava mergulhado em novo projeto.
O próprio Allen é crítico em relação ao seu filme. Tanto é que, conforme foi amplamente noticiado, após ter feito uma primeira filmagem decidiu rodar tudo novamente. E, se dependesse de sua vontade, faria uma terceira refilmagem. A primeira versão foi quase concluída, com Christopher Walken como Peter, o escritor-publicitário, papel que depois passou pelas mãos de Sam Shepard (roteirista de "Paris Texas") e finalmente foi confiado a Sam Waterson. Woody não gostou do trabalho e decidiu fazer tudo de novo, só que com isto o elenco teve que sofrer modificações. Maureen O´Sullivan (sua sogra, mãe de Mia Farrow) foi substituída por Elaine Stritch (famosa no teatro americano), pois estava doente - no papel de Diane, a mãe de Lane (Mia Farrow, mantida no papel). Charles Durning (que acabou desaparecendo do elenco) foi o primeiro a interpretar o papel do vizinho Howard, enquanto Denholm Elliot (Howard na versão final) fazia Lloyd, o segundo marido de Diane. E Jack Warden assumiu Lloyd no elenco definitivo. Como sempre há um orçamento extra, as mudanças não atrapalharam a produção.
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Como na "Quadrilha" de Drummond, seis personagens vivem suas cirandas de sentimentos: Howard, um solitário cinqüentão, ama Lane - uma mulher insegura e traumatizada, que ama Peter (um escritor em busca de afirmação), que ama Stephanie (melhor amiga de Lane, casada, mas em crise com seu marido) e que sentindo-se vazia talvez até consiga amar Peter, mas tem deveres para com a família, que está na Filadélfia.
Vincent Canby, do New York Times - e o mais importante crítico de cinema dos EUA (tão importante que se dá ao luxo de só escrever sobre filmes muito especiais) foi dos mais felizes em sua apreciação: "September" é o filme mais arriscado que Woody Allen já fez até hoje. É um pequeno e bem disciplinado drama sobre o amor, a amizade e a família, inteiramente situado dentro de uma casa de veraneio em Vermont, no fim da estação. As pessoas chegam e partem para outras destinações, mas o filme permanece dentro do chalé, como um fantasma inválido, possivelmente hipocondríaco.
Talvez exista um mundo lá fora, mas a platéia não pode vê-lo. Durante o dia, as persianas de madeira são fechadas. À noite, quando são abertas, o que existe lá fora é apenas escuridão. Os fortes clarões de relâmpagos não revelam nada. A casa talvez esteja à deriva num universo que alguém descreve como "dominado pelo acaso, moralmente neutro e cheio de uma violência sem imaginação".
Neste cenário e clima - que muitos identificam também com influências do escritor russo Anton Tchecov (1860-1904) - Woody faz o seu microuniverso no passar de poucas horas, mas com referências ao passado: quando adolescente, Lane baleou um gangster que namorava a mãe, a então estrela Diane, hoje envelhecida, mas ainda infernizando a vida da filha (o caso remete ao episódio real de Cheryl Crane, filha de Lana Turner, que assassinou o gangster Stompanato).
O episódio marcou profundamente a frágil Lane (Mia Farrow), insegura, tentando vender a casa em que vive (e que sua mãe acaba reivindicando) para tentar começar de novo, como fotógrafa, em Nova York. Com exceção de Diane, impetuosa e egocêntrica, vivendo para o momento, todos os personagens são inseguros - como observou o crítico Ely Azeredo. A ação se passa nos últimos dias de verão - e, com a chegada de setembro, cada um buscará novo caminho. A vida como ela é - com a solidão de cada um, na constatação que Allen, com a sensibilidade de um profundo psicólogo, observador de corações e mentes, traça com sua câmara (aqui, a cargo do competente Carlos De Palma), ao som daquela música harmônica, das big bands (que ele, como jazzista amador, clarinetista às segundas-feiras no Michael´s Pub, em Nova York, tão bem sabe selecionar).
Sem dúvida que o cinema de Allen corta fundo, como uma navalha. Especialmente quando não há concessão ao humor. Um humor que, mesmo quando presente, é amargo como a vida.
LEGENDA FOTO - Mais um mergulho de Woody nos sentimentos femininos: a egoísta mãe Diane (Elaine Stritch, à esquerda), a frágil Lane (Mia Farrow) e a amiga Stephanie (Dianne Wiest) em "Setembro", um dos mais belos filmes do ano (em exibição no Luz).
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