A cor, o som e a vida em "Mishima"
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 27 de outubro de 1986
Há filmes que independente de outros méritos já atingem o espectador por alguns detalhes. Dois exemplos estão em exibição - infelizmente somente até amanhã (salvo decisão de última hora dos programadores) na cidade: "Mishima - Uma Vida em Quatro Capítulos" (Cinema I, 3 sessões) e "Viver e Morrer em Los Angeles" (Condor, 5 sessões).
Produzido pela dupla Francis Ford Coppola/George Lucas, buscando fazer uma biografia correta e audaciosa de um dos mais famosos escritores japoneses contemporâneos, Yukio Mishima (na verdade Kimitaki Hiraoka) que se suicidou de forma dramática, aos 45 anos, em 29 de novembro de 1970, este filme mereceria, sem favor, permanecer mais tempo em cartaz. Não só pela sua notável estrutura dramática, como pela linguagem das mais criativas, graças a um roteiro perfeito de Paul e Leonard Schrader (este, o roteirista de "O Beijo da Mulher Aranha", de Hector Babenco), que se desenvolve em quaro planos - os flash-backs da vida de Mishima, a transposição em forma de teatro de três de suas obras mais famosas) "O Templo do Pavilhão Dourado", "A Casa de Kyoto" e "Cavalos em Fuga") e, finalmente, "A harmonia da pena e da espada" - síntese de sua vida, com um ataque kamikaze num quartel de Tóquio, há 16 anos passados.
A fotografia de John Bailey associou-se a uma cenografia simplesmente deslumbrante de Eiko Ishioka (uma das maiores designers do Japão), o que se somando à trilha sonora minimalista de Philip Glass, valeram prêmios especiais no festival de Cannes no ano passado. Só este requinte entre cenografia-imagens-som já faria de "Mishima" um filme admirável e instigante. Há entretanto, toda a profundidade e contradições da vida do próprio personagem, autor de obras que agora começam a ser traduzidas para o português - "O marinheiro que Perdeu as Graças do Mar", "Sol e Aço", "Neves da Primavera" - apenas uma breve amostragem de sua imensa produção (40 novelas, 20 livros de contos e 30 peças de teatro). Para se entender também melhor a personalidade deste escritor precoce, narcisista, intelectual obcecado pelo passado heróico do seu país, sem dúvida nenhuma fascista e fortemente imperialista, é importante também conhecer sua biografia ("A vida e a morte de Mishima", de Henry Scott Stokes, edição da L&PM Editores, 312 páginas, Cz$ 99,00).
Há 16 anos, Mishima seqüestrou um general japonês para, num dos quartéis de Tóquio, tentar sublevar as tropas. Ante o insucesso de sua pregação, dilacerou suas vísceras ritualmente, em companhia de Morita, seu amante.
Como tão bem sintetizou Vivian Wyler, Mishima concretizou em obra e vida o que ele acreditava ser a síntese do Japão: o crisântemo e o sabre. A suprema delicadeza e o sangue mais copioso, provocado da forma mais cruel e homicida. Deixou como testamentos "A Derrocada do Anjo", último livro da tetralogia da Fertilidade e um bilhete: "a vida humana é limitada, mas eu gostaria de ser eterno". Sua popularidade após a morte prova que conseguiu o que queria.
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Se "Mishima - Uma Vida em Quatro Capítulos" é um filme amplo e profundo, tanto esteticamente como interiormente uma obra para reflexão, "Viver e Morrer em Los Angeles", de William Friedkin, não tem tal dimensão. Thriller policial com muita ação (característica, aliás, de Friedkin, consagrado por seu "Operação França"), destaca-se entretanto por dois aspectos: uma belíssima fotografia de Robby Muller, com contornos notáveis da arquitetura e silhueta de L.A. e uma das melhores trilhas sonoras do ano, do chinês Wang Chung - por sinal lançada em lp pela CBS há mais de um ano. Só isto já justifica a visão de "To Live and Die in L.A.", que mesmo com elementos de agrado do grande público está tendo fracas platéias no cine Condor.
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