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Aramis

Denise, o brilhante perfeito nos gestos

É um espetáculo perfeito. Uma obra de ourives. Um brilhante verdadeiro. Não há nenhum instante a mais ou a menos e a sensação é de emoção e paixão. Portanto, não foi sem razão que o crítico do "New York Times", após assistí-la no Mama Theatre, lhe dedicou um grande elogio, o suficiente para garantir casas lotadas durante toda a temporada. Com "Mary Stuart", Denise atinge a condição de artista internacional - e o calendário apertado de compromissos em vários países é a confirmação do sucesso desta paranaense de Irati, que com garra, amor e talento construiu sua carreira dentro de uma técnica difícil, como pouquíssimas superstars em todo o mundo (as referências a Marcel Marceau e Jean-Louis Barrault são sempre indispensáveis quando se fala em mímica, embora existam hoje outros mímicos de talento). No Brasil, desde Ricardo Bandeira - cuja carreira foi destruída devido ao alcoolismo - não surgia um talento tão forte na mímica, Mais ainda: Denise partiu para outra escola, juntando a técnica dos gestos com a experiência da fala, ela que, desde aquela mágica madrugada de 1966, quando apresentou no antigo Teatro de Bolso a sua primeira peça ("Círculo na Lua, Lama na Rua" ), sempre se mostrou uma excelente atriz. O desafio era grande, imenso! Reduzir ao palco despojado - apenas uma cadeira, um telefone em certo momento e a triha sonora (extremamente bem escolhida) todo o universo dramático na luta entre duas mulheres de fortíssimas personalidades: a rainha Elisabeth I, da Inglaterra, que manteve presa, por 22 anos a sua prima, a católica Mary Stuart, rainha da Escócia - que temia, viesse ameaçar seu longo reinado. Inicialmente Denise havia pensado num espetáculo dividido com outra grande atriz (chegou a manter entendimentos com Fernanda Montenegro), mas impossibilidades de produção a fizeram congelar a idéia. Viajando em novembro do ano passado para Nova Iorque, teve uma atitude tão corajosa quanto importante: ao invés de ficar no seguro - ou seja, uma nova temporada de "Um Orgasmo Adulto Escapa do Zoo", de Dario Fa (que, por 3 anos, encenou no Brasil), partiu para um projeto solitário: reduzir o texto da italiana Dacia Maraini a um espetáculo-solo, no qual é, simultaneamente, Mary Stuart e Elisabeth I. É impressionante como Denise consegue transpor no espaço cênico de um palco fazio toda a dimensão dramática de uma história de poder & luta, finalizada, justamente há 400 anos, quando, Elisabeth, A Rainha Virgem, decidiu pela decaptação de sua prima Mary Stuart. Uma decisão amarga e difícil, pois sua mãe, Ana Bolena, havia sido decapitada por ordem de Henrique VIII e Elisabeth I sabia que a morte de uma rainha era uma perigosa concessão - e, ela poderia também ter igual destino. Quando vem na retina imagens de fracassos de superproduções shakespereanas - como "Ricardo III", encenado no Guaíra há alguns anos - a admiração pela visão que Denise consegue dar ao seu espetáculo é maior. Afinal, com ironia, bom humor e até toques políticos - as referências contemporâneas ao líder sulafricano Mandela e ao jornalista Wladimir Herzog não ficam perdidas no contexto mas, ao contrário, se integram dentro da própria proposta ideológica. Em alguns momentos, quase referências godardianas - como a criativa seqüência ao telefone, ao som de "Superman" da performática Laurie Anderson, com seu ritmo de computador acompanhado numa coreografia perfeita. Por duas vezes, citações do Brasil via Elis Regina, ao som de "Aquarela do Brasil" (Ary Barroso) e "Maria, Maria" (Milton Nascimento) - estas cenas extraídas do espetáculo "Elis", que Denise apresentou no mesmo palco do Guaíra em agosto do ano passado. xxx Em "Mary Stuart" não há nada de gratuito. Como um perfeita ouríves, Denise trabalhou o brilhante de gestos e palavras resultando num espetáculo em que a emoção é gestual - embora haja longos diálogos, que, em sua dicção clara e perfeita, passa ao público. Não basta emocionar o espectador: é importante fazê-lo pensar e refletir e ao buscar uma história de intrigas & conspirações de quatro séculos passados, na fria e distante Inglaterra, Denise Stoklos realiza um espetáculo quente, atual, up, bem dentro daquilo que se propõe ao lançar o Teatro do Essencial, aquele teatro "que tenha o mínimo possível de gestos". Movimentos, palavras, figurinos, cenários, adereços e efeitos, o mínimo. E que contenha a máxima teatralidade em si próprio. Com lucidez, no texto-manifesto do programa (e que O Estado do Paraná publicou na última quarta-feira, 5), Denise lança as bases deste Treatro do Essencial afirmando: - "Quero trocar a fantasia da composição teatral pela presença viva do ator. Acredito na relação da noval realidade que se faz na força da presença do ator engajado na história com suas idiossincrasias, sem recursos do fabricado, limpidamente como água na fonte." xxx "Mary Stuart" é Denise de princípio ao fim. Ela praticamente reelaborou o texto (tanto é que teve que registrá-lo em seu nome), concebeu as marcações e a direção, escolheu a (perfeita) trilha sonora. Só a iluminação teve uma ajuda, no caso de Isla Jay, fotógrafa e iluminadora, pernambucana de Recife, mas há nove anos morando em Nova Iorque. E a iluminação é perfeita: o traje simples, despojado, e Denise adquire efeitos cromáticos - do cinza ao cor-de-rosa, os focos brancos, a mudança de cenas, integram-se no contexto dramático. Um espetáculo como "Mary Stuart" lava a alma do espectador cansado da mesmice de um teatro apelativo e comercial. É a renovação, o vigor, o talento e a criatividade - numa atriz que, pela sua própria individualidade de trabalho, é hoje a mais portátil das profissionais, em condições de, sozinha, na linguagem universal dos gestos, levar a emoção à platéias de todo o mundo - de Nova Iorque a Ilha de Java. Só um fato pode tirar de Denise o prêmio Moliére - 1987, como melhor espetáculo ou melhor atriz: a impossibilidade de "Mary Stuart" vir a ser apresentada em São Paulo e Rio de Janeiro neste ano.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
17
12/05/1987

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