Dias de violência e tortura em documentários
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 01 de novembro de 1989
Brasília
Após duas diferentes visões da periferia do Rio de Janeiro - a intensa realidade capturada nas imagens contundentes de Octávio Bezerra em "Uma Avenida Chamada Brasil" - que abriu ontem à noite o Festival - para a diluição na linha humorística do besteriol glamorizado de "Lili, a Estrela do Crime" (programado na última hora, em substituição a "Barella", que não ficou concluído a tempo de concorrer), o momento de maior emoção política do Festival deve acontecer amanhã, quando será apresentado "Que bom te ver viva", de Lúcia Murat.
Mesmo os mais emperdigados machões, desde que sensíveis a força das imagens verdadeiras, dos mais brutais fatos ocorridos num passado recente, por certo não conterão lágrimas em certos momentos deste filme que já levou a emoção aos que o viram em Gramado, mostrado hor concours, e também no circuito carioca onde está em exibição desde o dia 19 de outubro (Art Fashion Mall/Studio Paisandu).
Jornalista, torturada durante dois meses no antigo DOI-CODI em 1971 e presa política por três anos, Lúcia Murat realizou um filme pessoal mas universal em sua dimensão de denunciar a violência política, o sofrimento de um grupo de mulheres que, por suas convicções políticas foram presas, torturadas, chegando ao extremo da resistência humana - mas sobreviveram e hoje, praticamente sem ódios, relatam, em depoimentos gravados em vídeo com o enquadramento semelhante ao de retratos 3x4. Assim os sete depoimentos das mulheres presas e torturadas no período político (só a oitava depoente, uma anônima, quatro anos de clandestinidade, sem filhos e que vive hoje numa comunidade budista, não quis se identificar) foram filmadas em seu cotidiano, à luz natural, representando assim a vida natural. Entre os depoimentos reais, o discurso inconsciente do monólogo da personagem de Irene Ravache - tranqüilamente a candidata mais forte a levar o Candango (e o cheque de NCz$ 4 mil) como melhor atriz do Festival. Para quem já viu o filme - desde as duas primeiras sessões públicas em Gramado - este fato é inegável. Rubens Ewald Filho, do "Jornal da Tarde" e Rede Globo, foi enfático em seu comentário feito naquela ocasião: "Eu daria para Irene Ravache todos os prêmios de interpretação do festival. Esquecia até que o filme está fora de competição".
Os Depoimentos
A jornalista Marcia Cezimbra, do "Jornal do Brasil", entendendo com profundidade a importância deste filme tão especial, escrevia há três semanas no JB: "o comovente não é apenas o sofrimento de oito mulheres com a violenta tortura das partes mais sensíveis do corpo feminino. A emoção está na beleza dessa gente tão louca e tão lúcida que afirmou com a própria vida sua condição primeira de ser livre". "A dor permanece no nosso cotidiano, mas o filme não é de terror. É uma história de amor à liberdade", diz uma delas, a professora universitária Rosalina Santa Cruz, 43 anos, presa e torturada com o marido e que dava apoio a uma organização de esquerda em 70. Seu irmão mais novo é desaparecido político. Tem três filhos e é professora da PUC em São Paulo.
Outro aspecto que Marcia destacou em seu texto: o comportamento da mulher nesta situação limite. Lúcia Murat, com extrema sensibilidade, apresenta a diferença da mulher diante da tortura e, indiretamente, diante do mundo. O filme comprova a singularidade de seres enigmáticos, que reconstroem a vida dilacerada através da maternidade, do amor incondicional.
Uma das frases que ficam no espectador é a de Maria do Carmo Brito, 44 anos, 2 filhos, ex-comandante da Vanguarda Popular Revolucionária, presa em 1970 e que passou 60 dias sendo torturada, dez anos no exílio e hoje trabalha no governo na área da educação.
- "O homem tem uma barriga que só produz cocô e isso deve ser horrível".
De todas as depoentes, a que está mais presente na memória do público é Jesse Jane, hoje com 37 anos. Presa em 1970 durante uma tentativa de sequestro de avião, passou três meses sob tortura e nove anos na prisão. Saiu com a anistia e hoje é historiadora.
Tem uma filha que nasceu na cadeia.
Admitindo que foi terrível registrar sua história - mas que o esforço compensou pela maneira sensível e bonita como Lúcia usou os depoimentos - Criméia Schmidt de Almeida, 41 anos, fala da guerrilha do Araguaia, na qual perdeu o marido, o sogro e o cunhado - sendo uma das poucas sobreviventes. Trabalha como enfermeira em São Paulo e também teve um filho nascido na cadeia. Estela Bohadana, 40 anos, presa e torturada duas vezes, dois filhos e doutora em filosofia, sintetiza a importância do filme de Lúcia Murat:
- "Foi a oportunidade de ver rompido um silêncio em torno de algo que aparentemente afetou apenas um pequeno número de pessoas, mas que, na realidade, foi uma experiência traumática para a sociedade como um todo".
Maria Luiza Garcia Rosa, 37 anos, que começou na política estudantil, presa e torturada três vezes, hoje com dois filhos, médica sanitarista, também traz um depoimento humano, emocionada por ter participado deste "documentário pela paz e contra a violência". Outra militante dos movimentos estudantis nos anos 60. Regina Toscano, 40 anos, foi presa ao se ligar a uma organização de esquerda. Epilética e grávida, foi torturada ao ser presa em 1970, perdeu o filho na ocasião. Hoje tem três filhos e trabalha junto ao movimento comunitário.
Mulheres de uma mesma faixa etária, vindas da classe média e que representam tantas outras que, por idealismo, coragem e a generosidade de lutar contra a violência e a prepotência, se engajaram na luta clandestina nos anos mais duros da revolução. Só uma mulher, com a sensibilidade de Lúcia Murat, após oito anos e meio de psicanálise, poderia realizar um filme tão profundo - nesta segunda experiência cinematográfica (o seu primeiro filme, realizado em seu exílio, "O Pequeno Exército Louco", curta-metragem, em colaboração com seu ex-marido, jornalista Paulo Adatio, do JB, só teve até hoje exibições em circuitos especiais). Colaborou muito a sua experiência em trabalhos na televisão, desde que voltou ao Brasil. Assim, o nono personagem) o único de ficção-realidade, vivido com toda emoção por Irene Ravache, reúne o real e o imaginário de Lúcia. Ela não aponta, entretanto, o que em Irene faz parte de sua história real e na entrevista a Marcia Coimbra explicou:
- "Tem coisas muito pessoais que não posso identificar".
Revelou, entretanto, que viveu uma das cenas finais de Irene Ravache. Certa vez Lúcia Murat disse a um algoz que preferia ser morta a ser torturada. O sorridente torturador respondeu que um dia ainda lhe agradeceria por estar viva. "Isso aconteceu comigo".
Produção barata (custou apenas US$ 50 mil), aprovado pela Fundação do Cinema Brasileiro, a sua realização não foi fácil, pois a crise impedia a liberação dos recursos necessários. Assim só pode ser concluído com o dinheiro do prêmio de "O Pequeno Exército Louco", concedido pela produtora Sky Light - por coincidência a mesma produtora que possibilitou a Octávio Bezerra realizar, sem financiamento da Embrafilme, o outro grande documentário deste festival - "Uma Avenida Chamada Brasil".
Para um Festival com a tradição política que marcou as corajosas edições dos anos 70, como o de Brasília, a apresentação de "Que bom te ver viva", não poderia deixar de ser mais apropriado. E o júri do Festival, por certo, vai se debruçar sobre a importância deste filme - já levado a três festivais no Exterior e programado para vários outros - sair com premiações, apesar de outros filmes importantes ("Uma Avenida Chamada Brasil") ou que poderão surpreender ("Vieira", de Júlio Bressane e "Minas-Texas", de Carlos Prates) estarem também em competição.
LEGENDA FOTO - Irene Ravache, a favorita ao Candango de melhor atriz no Festival de Brasília, por sua esplêndida atuação em "Que bom te ver viva".
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