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Aramis

A espiritualidade sonora no Brasil

A igreja e a música sempre estiveram intimamente ligadas. Os cantos, réquiens, missas e demais peças religiosas caminham com a igreja fundada por Cristo e que ao longo de 2 mil anos tem dado ao mundo muitas obras-primas. Na música brasileira, entre os eruditos e, principalmente, compositores do povo, há também uma significativa presença desta religiosidade sonora. Aqui, algumas rápidas anotações, feitas apenas como registro alusivo a presença do Papa João Paulo II - ele próprio um cantor de músicas folcloricas polonesas, com dois elepes editados pela CID - a propósito desta inter-relação música - espiritualidade. Do pioneiro iundu << Cristo Nasceu na Bahia >>, atribuído ao cantor e ator Xisto de Paula Bahia (Salvador, 1841/Caxambú, MG, 1894) ao verdadeiro merchandising que hoje cerca a chamada música espiritual ou religiosa, há um longo processo que ainda não mereceu os estudos devidos. A motivação da visita do Papa João Paulo II ao Brasil apressou algumas gravadoras a lançarem discos que possam motivar também fonograficamente os fiéis. Afinal, o Brasil o maior País católico do mundo!... A companhia Industrial de Discos, da família Zuckermann, há mais de um ano, já havia lançado um elepê com João Paulo II interpretando canções folclóricas e, agora, editou um segundo volume, com o título << canções do Papa na voz de João Paulo II >>. Como a Sigla/Som Livre, com o poderio promocional da Rede Globo, editou uma espécie de programa gravado, naturalmente com a foto do Sumo Pontífice na capa, a CID colocou um poster lembrando que os seus são os << únicos discos realmente gravados pelos Papa >>. Paralelamente, outras fábricas aproveitam para colocar na praça canções religiosas, hinos, e até missas. A Polygram, aproveitou um álbum do Fischer Choral, feito há 3 anos passados, mas que no rolo papal que assola o País, sempre encontra seu espaço. NÃO TOMAR SEU SANTO NOME EM VÃO... O segundo dos mandamentos de Deus parece que não é levado a sério pelos compositores. Um levantamento elaborado há três anos pelo Serviço de Processamento de Dados por encomenda do Conselho Nacional de Direito Autoral para codificar todas as músicas gravadas existentes no Brasil registrou mais de 100 composições tendo << Deus >> no título - ligando as mais exdrúxulas situações. Desde o << Deus Brasileiro >>, dos irmãos Marcos-Paulo Sérgio Valle, já com mais de vinte gravações, até colocação pessoais no base do << Deus é Meu Guia >>, << Deus Está Comigo >>, << Deus Está Somando >>, << Deus é Testemunha >>, << eus Há de Me Ajudar >>, << Deus Lhe Abençoe >>, << Deus Lhe De Boa Noite Sá Dona >>, << Deus Lhe De em Dobro >>, << Deus Me Castigue >>, << Deus Me Ajudou >>, << Deus Me Perdoe >>, << Deus Não Me Esqueceu >>, << Deus Nos Acuda >>, << Deus Nos Guarde >>, << Deus Sabe O Que Faz >>, entre tantas outras invocações. Um certo Valério colocou << Deus é o Samba >>, enquanto a cantora Elza Soares já chegou a gravar << eus é Viola >>. Mas poucas músicas com Deus no título tiveram tantas gravações, com a caustica composição de Chico Buarque de Holanda, << Deus Lhe Pague >>, que em seis anos (1971/77) já tinha merecido 15 diferentes interpretações - desde a voz do dono (da música, e claro) até no bolerista Roberto Luna. Pedir a Deus ou invocá-lo em nome do amor foi argumento em inúmeras marchinhas carnavalescas e Linda Batista, num carnaval dos anos 40 cantava que << Deus fez o Mundo em seis dias >> e propunha o justo descanso para a alegria. Embora sem propor mensagem materialista, mas sofrendo por uma paixão, um certo José Lopes chegou a dar título a um terrível samba-dor-cotovelo de << Deus Não Existe >>, que, oficialmente, teve até hoje duas gravações. Só a imensa musicografia com a palavra eus já justificaria uma tese a parte. Que, como tantas outras temáticas a espera de pesquisa, fica a disposição de quem interessar possa. ESPIRITUALIDADE DÁ SAMBA? Mais importante do que a simples relação de nomes de músicas e citações de autores ou transcrições de versos e estrofes, é a questão da própria espiritualidade na alma dos compositores. Assim, ao lado da presença religiosa na obra dos compositores ditos eruditos, nota-se uma pureza em versos simples de um cartola (<< Enquanto Deus Consentir >>, << Grande Deus >>, << Dê-me Graças, Senhor) ou Nelson Cavaquinho (<< Deus Não Me Esqueceu >>), dois exemplos maiores de compositores advindos das classes mais humildes, que só sexagenários passaram a ser reconhecidos em toda a dimensão de seu talento. Ataulfo Alves (1909-1969) mineiro de Miraí, mas de formação e vivência carioca, outro compositor que se identificou sempre com a linguagem mais popular, em várias de suas criações falou em Deus, especialmente destacando-se sua parceria com Antônio Domingues, em 1958: << Vai na Paz de Deus >>. E que dizer do gaúcho Lupiscinio Rodrigues (1914-1974), outro criador que sem nunca ter abandonado Porto Alegre, compôs sambas-canções dos mais dolentes e, em tantos, demonstrou sua grande religiosidade. É impossível, num breve texto jornalístico, feito sem tempo para maior pesquisa, relacionar tantos, entre os autores que se voltaram, em alguns momentos de suas vidas, a presença espiritual. Só de << Ave Maria >> há mais de cinqüenta títulos registrados, sendo que Villa-Lobos (1887-1959) entre 1909-1939, compôs nada menos que uma dezena de peças com este nome, para as mais diferentes formações, enquanto o cearense Alberto Nepomuceno (1964-1920), fez quatro Ave Marias e Camargo Guarnieri, além de cinco peças corais, dedicou ainda recentemente (1974) um quarteto de cordas com este título. Mais isto no campo de música erudita. Na música popular, propriamente dita, nem uma outra composição com este tema alcançou a popularidade de << Ave Maria, no Morro >>, que Herivelto Martins - hoje com 68 anos, lançou em 1942, com o Trio de Ouro, que formava ao lado de Nilo Chagas e Dalva de Oliveira, na época sua esposa. O CANTO DE DEUS NA VOZ DO POVO Há seis anos, o jornalista Antônio Chrisóstomo promoveu no Outeiro da Glória, Rio de Janeiro, um recital da cantora Carmen Costa, 60 anos (completados dia 5 de janeiro último), interpretando Hinos, Benditos e Ladainhas. Flumense de Trajanos de Morais carmelita Madriaga - uma das mais belas vozes do Brasil, é, ao lado da maravilhosa Clementina de Jesus, 78 anos (a serem completados no próximo dia 7 de julho), uma das poucas intérpretes a conhecerem os contos religiosos, cultivados oralmente - e que o impacto dos modismos musicais, a influência nefasta de ritmos estrangeiros, vai fazendo desaparecer. O recital que Carmen Costa fez no Outeiro da Glória, com a participação de uma orquestra, liderada pelo clarinetista Paulo Moura, foi evento emocionante e embora gravada pela RCA, nunca foi editado em elepê. Clementina de Jesus, graças a sensibilidade de seu descobridor e << filho espiritual >>, o poeta Hermínio Bello de Carvalho, tem registrado, em seus discos, alguns hinos e cantos religiosos. Mas é muito pouco frente a tanta beleza que existe na tradição popular e que infelizmente corre o risco de se perder para sempre. Um campo a espera de pesquisa e estudo é o dos cantos evangélicos - hoje industrializados com etiquetas próprias, ligadas as múltiplas igrejas protestante, num fenômeno que justifica atenção. O fundamental é que seja pela voz dos autores populares, na erudição dos autores de formação clássica ou, principalmente, na tradição popular, a religiosidade sempre esteve presente na música brasileira - como na internacional. Afinal, se a Igreja resiste aos séculos, transformando-se e ajustando-se aos novos tempos, sendo uma das fortalezas da arte e cultura, também a inspiração religiosa não poderia faltar a quem tem sensibilidade músical. Aleluia, Senhor. Finalmente os instrumentistas estão tendo sua vez e hora. E se Paulinho Nogueira preferiu o esquema alternativo para seu último lp << Nas Asas do Vento >>, que não chegou ainda a Curitiba), Hélio Delmiro, 33 anos, já ganha um esquema promocional mais forte: << Emotiva >>, produção de Victor Assis Brasil e Maurício Quadrio, tem luxuosa edição da Odeon/EMI e, sem favor, fica entre os melhores discos do ano. No II Festival Internacional de Jazz (SP, abril/80), Hélio Delmiro arrancou aplausos na << Guitar summut >> com Joe Pass. Ouvindo-se o jovem brasileiro e o mestre da guitarra, companheiro querido de Oscar Peterson, difícil era saber quem mais admirar Delmiro, longa vivência como << side man >> (Músico de acompanhamento), alguns de produções bem sucedidas, estava preparado, mesmo, para este elepe. Se não bastasse sua segurança na guitarra/violão, o grupo que o acompanha é excelente: Pascoal Meireles na bateria, Danilo Caymmi na flauta, Paulo Russo no baixo, Jota Moraes no vibrafone (Jotinha, aliás, acaba de fazer seu lp-solo, produção independente) e Luiz Avelar (piano). Músico de seu tempo, Hélio não se prende a escolas/gêneros: abre com um curtíssimo, mas emocionante, choro de 47 segundos: << Marceneiro Paulo >>, seguido de << Esperando >>, que como << Emotiva N.º 1 >>, composições próprias. Grandes mestres não poderiam ser esquecidos: Monk-Clarke (<< Epistrophy >>), Heyman/Sour/Green/Eyton (<< -Body And So 1 >>). afora Victor << Pro Zeca >> e << Waltzin >>) e Milton Nascimento (<< Tarde >>). O resultado é um elepê excelente. Virtuoso. Que se houve com emoção. Emotiva, como o título bem diz. FOTO LEGENDA 1- João Paulo II FOTO LEGENDA 2- canções do Papa na voz de João Paulo II FOTO LEGENDA 3- Chico: a cáustica << Deus lhe pague >>. FOTO LEGENDA 4- Cartola: << Dê-me graças, Senhor >>. FOTO LEGENDA 5- Elza Soares: << Deus é viola >>.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Música
1
04/07/1980

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