Família à italiana
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 06 de agosto de 1977
Os grandes cienastas identificam-se com certos temas, certos gêneros, que marcam suas obras. Assim Felline busca sempre o tempo perdido, com memórias oníricas de sua vida - num painel da maior beleza e universalidade, o sueco Igmar (Bergan( há anos mergulha com sua câmara na alma e no desespero humano, enquanto Luchino Visconti sempre se mostrou um documentarista do comportamento sócio-psicológico do homem e sua época. Mauro Bolognini, 54 anos, que trocou um curso de arquitetura em Florença pelo Centro Sperimentale de Cinematografia, em Roma, e após ter sido assistente de diretores como Luigi Zampa, Jean Delannoy e Yves Allegret, iniciou em 1953 sua carreira de diretor, é também um cineasta consciente e voltado a uma temática central. Ao longo de vinte e quatro anos de atividades regulares - e mais de uma dúzia de filmes, observa-se sempre uma visão crítica da sociedade italiana, dos conflitos humanos, das paixões e das ambições.
Desenvolvendo seus próprios roteiros ou buscando apoio nos grandes romancistas italianos, Bolognini tem se acorajado em temas movediços, perigosos, polêmicos: em 1960, num ano de grande impacto criativo, realizava a demolidora travessia de um jovem desempregado em "La Giornata Balorda" e "IlBell'Antonio" - na época um filme tão polêmico quanto havia sido, no ano anterior, "A Doce Vida" de Felline.
"A Herança dos Ferramonti" (cine Astor, 2ª semana) é um filme com todo o peso, sinceridade e coragem de Bolognini. Se em "O Leopardo", do romance de Lapedussa, Visconti era visceral na sua análise da aristocracia siciliana - realizando um dos mais belos e políticos filmes do cinema italiano nos últimos 20 anos, neste "L'Heritá Ferramonti", Bolognini - sem dúvida sempre um discípulo de Visconti - restringe o seu universo a uma família romana, sem origens nobres, mas também arrastada a um processo de destruição movido pela ambição. A análise de Bolognini se concentra em patriarca, que fez a fortuna "trabalhando com a farinha e roubando no peso", como acusa um de seus filhos, Mário - e o relacionamento que uma mulher jovem, tão bela quanto ambiciosa, (Dominique Sanda) provoca - num jogo de ambições e traições, conduzido a um final moralista, que não deixa, entretanto de ser irônico e crítico ao mesmo tempo.
"A Herança dos Ferramonti" é um filme denso, pesado, com um desenvolvimento linear, que exige tanto grandes intérpretes - o que consegue, a começar pelo veterano Anthony Quinn, num trabalho da maior maturidade - como é ainda escudado na perfeita cenografia, com a cuidadosa reconstituição de época (final do século XIX) e uma fotografia de Ennio Guarnieri, em tons suaves, que se coloca como um dos mais belos trabalhos do ano. Ennio Moriconne, hoje o mais importante compositor do cinema italiano, também criou uma trilha sonora ajustada ao clima denso e penetrante da obra. Enfim, uma conjugação de talentos e, principalmente, de sólidos recursos, para fazer de "A Herança dos Ferramonti" um filme da maior dignidade. A colocação político-social da trama - que pode motivar amplos debates, as adultas interpretações e principalmente a visão crítica de Bolognini, fazem deste um dos bons filmes da temporada - que merece ser visto por quem ainda acredita no cinema como veículo de idéias, de posições, de enfoques críticos - sem abandonar o requinte técnico, o bom gosto, o emolduramento cromático-musical, que o fazem também um entretenimento.
Enviar novo comentário