Kirk, Andrei, Akira falam sobre cinema
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 16 de setembro de 1990
Nos anos 60, quando eram raras as editoras que publicavam livros de cinema, Enio Silveira, da Civilização Brasileira, não só lançou obras polêmicas como a "Revisão Crítica do Cinema Brasileiro" de Glauber Rocha (1939-1981), como, corajosamente, chegou a criar uma coleção de roteiros pela qual saíram vários scripts dos filmes de Federico Fellini.
Hoje pertencente ao grupo Bertrand, a mesma Civilização continua a lançar bons livros de cinema, como as biografias de Kirk Douglas e Marlon Brando - esta recentemente colocada na praça.
"O Filho do Trapeiro", autobiografia de Douglas (512 páginas, tradução de Elena Gaidano), saiu há dois anos nos Estados Unidos a alguns países europeus e teve uma acolhida bem mais ampla das que, normalmente são dadas a livros escritos por superstars da tela. Isto porque se escrever uma autobiografia tanto pode ser uma demonstração de cabotinismo quanto um duro processo de auto-análise, em "O Filho do Trapeiro" o ator Kirk Douglas (Issur Demsky Danielovitch, Nova York, 1916) foi fundo na garimpagem de sua própria existência. Ênio Silveira, na noite de apresentação, lembra que o astro de "A Montanha dos 7 Abutres" se dedicou ao livro sem a colaboração de um ghost-writter e cada lembrança, cada palavra, veio diretamente do mais íntimo de seu ser, retemperada ao mesmo tempo pela reflexão e pelo sentimento. O que da um grande sentido humano, a este livro, escrito num tom direto, "sem tinturas melodramáticas, e com algumas pitadas de sarcasmo aqui e ali", onde fala de sua origem humilde como Issur Danielovitch Demsky, único filho homem - entre seis irmãs - de Hershel e Byrna Danielovitch, dois imigrantes judeus russos, analfabetos, que chegaram aos EUA na primeira década deste século. Viveu toda sua infância na miséria, pois seu pai, um trapeiro, gastava nos bares do distrito de Amsterdan, Estado de Nova York, o pouco que ganhava.
A luta pelo sucesso, os filmes que fez, seus envolvimentos amorosos (entre outras mulheres teve Joan Crawford, Rita Hayworth, Gene Tierney, Marlene Dietrich, Pier Angeli) misturam-se as suas reflexões nesta obra da maturidade, sensível e profunda.
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Outro importante livro sobre cinema é "Esculpir o Tempo", coletânea de ensaios do cineasta soviético Andrei Tarkovski (1932-1986), que em tradução de Jefferson Luiz Camargo saiu na segunda quinzena de agosto pela Martins Fontes (305 páginas, 5 mil exemplares). Ilustrado com 79 fotos - tal como na edição inglesa da Bodley Head (1986), esta obra é importante para se conhecer melhor o pensamento de um cineasta soviético da maior criatividade que, como informa Álvaro Machado, da mesma forma que Sergei Eisenstein (1898-1948), escreveu seus livros durante os longos silêncios que a produtora estatal soviética impôs à sua filmografia, ou depois, durante o exílio. Em 1962, Tarkovski recebeu o Leão de Ouro em Veneza por "A Infância de Ivan", seu primeiro longa. O filme seguinte, "Andrei Rublev", que estudou a obra do mais famoso pintor de ícones russo, foi acusado de "formalismo" e marcou o início dos problemas do cineasta com as autoridades soviéticas que culminaram com o exílio do Ocidente em 84 - morrendo em Roma há 4 anos. Cerebral, profundo, realizou filmes considerados difíceis como "Solaris" (1972), "Stalken" (1979), "Nostalgia" (1982) e "O Sacrifício" (1986) que podem ser vistos em vídeos selados.
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Outro nome maior do cinema também tem sua vida publicada no Brasil: "Akira Kurosawa - relato autobiográfico" (tradução de Rosane Barguil Pavam, Marina Naomi Tanai, Heitor Ferreira Costa e Izabela Sanches, editora Estação Liberdade, 296 páginas, Cr$ 1.870,00). escrito há 9 anos, quando Akira contava com 71 anos, este "Relato Autobiográfico" afirma no prefácio que foi convencido a publicação de sua autobiografia após o francês Jean Renoir (1894-1979) ter em "Ma Vie et Mes Films" (inédito no Brasil) escrito que "todo indivíduo é ele mais a circunstância do que viveu e que o influenciou". Assim, o diretor de "Os 7 Samurais" e "Sonhos" (programado para breve lançamentos em Curitiba) decidiu fazer uma autobiografia nos moldes da de Renoir, repleta de reminiscências fragmentária a respeito das maiores influências sobre a vida e obra do diretor dos insuperáveis "A Grande Ilusão" e "A Regra do Jogo" (1939), programado para ser exibido na Cinemateca na próxima semana).
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Anualmente, a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro edita uma relação dos livros de cinema que ganharam edição nos últimos 12 meses. Em 1990, apesar da redução editorial, a bibliografia especializada tem crescido, com muitos lançamentos importantes. Estudos inclusive sobre o cinema brasileiro vem aparecendo, como o interessante "Quase Catálogo 1", espécie de inventário sobre as mulheres cineastas brasileiras que o CIEC - Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lançou em 8 de março último, no Dia Internacional da Mulher, na Casa da Cultura Laura Alvim. Lamentavelmente é difícil encontrar este "Quase Catálogo 1", no qual as pesquisadoras Ana Pessoa e Ana Mendonça, passaram três anos para destrinchar informações erradas fornecidas pelo Concine e outros órgãos oficiais. Assim cadastraram cerca de 500 filmes assinados por quase 200 cineastas espalhados pelo Brasil.
Outro livro de difícil aquisição já que teve sua edição fora do mercado patrocinada pela Fundação Banco do Brasil - é "Oscarito: Nosso Oscar de Ouro", texto de Elias Fajardo, pesquisa fotográfica de Reyjond Asseo (AC&M Editores, 1990, 94 páginas).
O interesse que o excelente "Este Mundo é um Pandeiro - a Chanchada de Getúlio e JK" (Companhia das Letras, 1989) de Sérgio Augusto, provocou em torno da chanchada deve ter estimulado a revalorização de Oscarito (Oscar Lorenzo Jacinto de La Imaculada Concepcion Teresa Dias, 1906-1970), que ganhou também a forma de "troféu" a ser concedido anualmente a uma personalidade do cinema brasileiro no Festival de Gramado a partir de 1990.
Neste livro, Fajardo reconstruiu em sua primeira parte a carreira de Oscarito desde a infância com a família circense européia até se tornar o grande comediante da Atlântida, na qual protagonizou 34 chanchadas entre 1944/62. As partes seguintes são de colaboradores e amigos de Oscarito - a começar por sua viúva, a atriz Margot Louro, passando pelo diretor Carlos Manga (que o dirigiu em filmes como "Nem Sansão, Nem Dalila", "Matar ou Correr"). Um trabalho documental importante que, se espera, a Fundação Banco do Brasil faça chegar às mãos de estudiosos e profissionais ligados realmente ao nosso cinema.
LEGENDA FOTO - Kirk Douglas - na cena, abraçando Marilyn Maxwell em "O Invencível" (The Champion, 1949, de Mark Robson) - agora lançado em vídeo, recorda em sua autobiografia "O Filho do Trapeiro" os dias de miséria em Nova York nos anos 20.
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