Maysa, ouça!
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 25 de janeiro de 1977
"ANDO SÓ NUMA MULTIDÃO DE AMORES" (Dylan Thomas)
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"Meu nome é Maysa Figueira Monjardim. Já houve uma época em que ele foi Maysa Matarazzo para alguns. Para mim sempre foi Maysa só. Eu nasci no Rio de Janeiro, Botafogo. Nós todos do Botafogo temos uma mentalidade diferente. É uma raça a parte dentro do carioca. Rua Visconde Silva, 102, uma casa que hoje está transformada em hospital. Uma vez eu passei por lá e fiquei muito triste".
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"Não vou querer
Não Vou poder mais
Teu olhar na minha vida
A tua calma companhia
Embora te queira tanto amor" (Me Deixe Só, Maysa)
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Manhã de 1o de dezembro de 1976. No estúdio da rádio "Ouro Verde", Maysa fala de sua vida. Tranqüila, serena, sem pressa. Em branca paz, como escreveria num breve registro, no Tablóide, no dia seguinte. Maysa estava mais uma vez em Curitiba. Sem compromissos profissionais, apenas descansando, na casa de uma amiga, Rose.
- Sabe, eu dificilmente consigo me relacionar com mulheres. Fazer boas amigas. Mas com Rose é diferente, realmente ela me faz sentir bem.
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"Minha infância foi muito gostosa.
Tanto é que é a única coisa que eu me lembro de minha vida, que não está bloqueada é a minha infância. Eu jogava futebol na rua, vivia em cima de árvores, vivia cantando em cima de uma mangueira que tinha nos fundos de quintal. Essa mangueira servia também de despertador: quando eu acordava eu via aquela manga caindo, que havia sido mordida pelo morcego, aí eu descia, pois estava na hora de pegar aquela manga, que ficava mais doce, mordida pelo morcego. Apesar disso eu tenho um medo incrível de morcego...".
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Há 6 anos, Maysa veio fazer um único show na boite Bugatti, que entusiasmou tanto o então proprietário da casa, Edson Bertoldi, que chegou a comprar um novo piano de cauda. Aliás, merecidamente, pois quem acompanhava Maysa era Luisinho Eça, que havia voltado há pouco dos Estados Unidos. A noite, em sedutor vestido negro, Maysa cantou como poucas vezes se ouviu.
Me deixa só
Errada e complicada
Não posso a tua paz
De nada me adianta a tua voz
Me cansa o teu eterno perdão
Embora eu queira tanto o teu peito
amigo, amigo. ("Me Deixe Só", Maysa).
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Maysa, 40 anos (completados no dia 6 de junho), 20 de carreira, 40 elepês, mais de 30 sucessos, 4 casamentos, dezenas de longas excursões na Europa e Estados Unidos. Mas era muito mais do que uma década, uma indentificação de toda uma geração, sem limites de idade, capaz de amar e sofrer, sentindo a força e a profundidade do samba-canção mais doído no cotovelo. Maysa, como Dolores Duran(1930-1959), como Silvinha Telles (1934-1966).
Valeska ou Marisa Gata Mansa, a cantora para ser entendida com pleno sentimento. Mas mais do que qualquer outra, assumiu e viveu toda a carga das suas letras ou de seus amigos compositores, de quem ela foi a melhor das intérpretes.
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As praias desertas continuam
Esperando por nós dois
A este encontro eu não devo faltar
(As Praias desertas, Antonio Carlos Jobim).
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"Me casei muito cedo: 17 anos. Comecei a viver uma vida fora da minha idade, embora a música tenha sempre me acompanhado de uma forma quase frustrante. Estudei piano clássico a vida inteira até então. Foi então que comecei ouvir música popular".
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O primeiro disco aconteceu por acaso: numa festa em sua casa, ela mostrou algumas composições, acompanhando-se ao violão. Estava casada com André Matarazzo e aguardando filho. O produtor fonográfico Renato Corte Real, da RGE, a ouviu e a convidou para fazer um disco. E seis meses depois, saia "Convite para Ouvir N. 1", com uma flor na capa e seis músicos de Maysa. O convite para ouvi-la foi aceito pelos românticos de todo o País. E a moça elegante, esposa de um dos herdeiros da maior fortuna de São Paulo, transformava-se em cantora que até o seu último dia de vida não deixaria de viver intensamente todos os momentos, todos os segundos.
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Todos acham que eu falo demais
E que ando bebendo demais
Que esta vida agitada
Não serve para nada
Andar por aí. Bar em bar.
(Demais, Antonio Carlos Jobim/Aloysio de Oliveira).
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"O artista, aquele desses dias de hoje, enche a boca quando diz que vai se apresentar no Olympia, de Paris. Isso, nessa hora de agora, nesse vale tudo da vida pisar naquele palco já não é mais uma grande jogada. As portas do Olympia estão ultimamente muito francas, e seu dono não está fazendo muita questão de escolha, e tanto faz uma troupe de cachorros amestrados, como um louco cantos de qualquer canto, que tenha cabelos verdes, e estamos conversados em francês. Mas, no calendário de dez anos atrás a coisa era diferente. Era preciso o aval de uma Piaf, a garantia de uma Sacha Distel, um "ou" de Jacques Brel, para que uma audiência experimental fosse conseguida. Estamos em 1963 e Maysa está em Paris. Os jornais escrevem seu nome certo, com "y" no meio e os fotógrafos têm diante de seus olhos uma moça de 26 anos, gorda de rosto, de corpo e de alegria. Na véspera de sua estréia o "France Soir" escreve assim, no escuro: "elle est três brune, dur genre "opulent", et bresiliense. Dans son pays, on la considérem comme l'une des plus grandes vedettes de la chanson". (Aloysio de Oliveira, no encarte do último LP gravado por Maysa, 1974, selo Evento).
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Maysa em branca e suave paz. Rompidos os últimos laços amorosos, anunciava em dezembro planos tranqüilos: vender sua casa em Maringá e aplicar o dinheiro na compra de uma velha mansão em Antonina. Dedicar-se à pintura, ao artesanato, talvez fazer alguma experiência teatral - apesar de sua única tentativa (a montagem de "Woyzeck" de George Buchner (1813-1837), em 1973, lhe ter custado prejuízo de milhões - levando todo o seu patrimônio na época. Mas o dinheiro não importava. Absolutamente. Apenas o necessário para viver. Tranqüilamente, em branca paz. Após muitos caminhos, amores, tristezas e alegrias. Sintetizadas talvez na frase do poeta inglês Dylan Thomas (1914-1953), por ela escolhido em 1970 para dar título ao único disco que fez na Philips: "Ando só numa multidão de amores".
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Ninguém pode calar dentro em mim
Esta chama que não vai passar
É mais forte que eu e não quer dela
Me afastar (resposta, Maysa).
1963, auge da Bossa Nova. Num coquetel no Grêmio de Arquitetura e Urbanismo, as batidas compensam a chatice dos papos. Até que um jovem estudante fala em Maysa. E a identificação é a mesma quando se menciona o "Barquinho", da qual ela foi a melhor tihotineira. Levando dentro todos os nossos sonhos, desejos e esperanças da juventude - de uma forma que nunca pudéssemos alcançar o barquinho, mas sempre próximos o suficiente para vê-lo. Manoel Coelho, hoje um dos mais respeitados arquitetos da cidade, fala com todo amor de Maysa. Amor compartilhado por milhões de outros brasileiros que não choravam apenas dor-de-cotovelo com seu "ouça", mas apaixonavam-se pelo sol, amor e mar do início da BN, na letra de Boscoli.
Dia de luz, festa de Sol
E um barquinho a deslizar.
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"Os olhos de Maysa são dois não
sei que dois não sei como diga dois
oceanos não pacíficos. Maysa são dois
olhos e uma boca". (Manuel Bandeira, 1886-1968).
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"A boca de Maysa falando e meus ouvidos escutando. Procuro em suas palavras um sentido lógico que complemente a emoção escolhida na sua voz de cantora. É estranho como a admiração à distancia pode as vezes queimar etapas: não nos conhecemos senão indiretamente através de amigos comuns como Aloísio de Oliveira ou Vinícius de Moraes - no entanto nem um minuto é passado e ela já me fala de sua vida como se eu fosse amiga de infância. Corremos o risco de só conversarmos assuntos sobre os quais eu não poderia escrever.
- Por que não? Pode escrever sobre o que você quiser". (Fernando Sabino, "A Voz que vem do coração", "Jornal do Brasil", 11/11/1974).
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Maysa fala. Sinceramente, sem grilos ou temores. No número 2 d' "O Pasquim" foi radical: "Elis Regina é mau caráter". Dia 1o de dezembro último, repete sua opinião sobre Elis. O medo sempre foi subjetivo e se há algo que nunca ninguém lhe pode acusar, foi a falta de sinceridade. Na música, na vida, no amor (ah! O amor), sempre assumiu suas verdades.
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Me deixa só
Errada e complicada
Não imponha tua mão no meu caminho
(Me Deixe Só, Maysa).
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Uma ou mil Maysas. Quantas mulheres sentiram em Maysa um pouco de si e adotaram o seu nome em nome de uma dor. De amor e desamor. Cantando, íntimamente, o mesmo recado que sempre foi sua identificação para com o público.
Ouça, vá viver...
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- "Depois do Amor" foi o "Je T'Aime Mas Non Plus" nos anos 60! Ao lado da suavidade poética de "Barquinho", a música de Normando Santos e Ronaldo Boscoli, com arranjo de Luiz Eça, antes do tamba Trio nascer, mas já com Bebeto na flauta e Hélcio Milito na percussão, dizia que seria um hino para muitos momentos, depois do uísque, durante o cigarro.
E depois do amor
Cai a paz sobre nós
Nossos corpos tão sós
Houve tudo de bom
A seu corpo entreguei
Uma flor, todo amor.
No seu corpo nu existi.
Tudo é paz pra nós.
Para muitos Maysa era a noite, a madrugada, a música da solidão e tristeza. Mas havia outra Maysa - que descobriu que o sol não queimava e que o mundo gira 24 horas por dia.
Dia de luz, festa de sol
Um barquinho a deslizar
No macio Azul do mar
Tudo é verão
Amor se faz, num barquinho
Que desliza sem parar.
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Silvinha Telles morreu há 11 anos, num acidente automobilístico. Maysa morreu sábado, também num acidente de automóvel. E ambas foram as mais sensíveis interpretes de uma música de Tom, com letra de Aloysio de Oliveira, que dizia.
Todos acham que eu falo demais
E que ando bebendo demais
Que esta vida agitada
Não serve para nada
Andar por ai, bar em bar
Dizem até que eu ando rindo demais
E que conto anedotas demais
Que não largo o cigarro
Dirijo meu carro correndo
Chegando no mesmo lugar.
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Por que tentar falar de Maysa com outras palavras que não as suas músicas? A sua poesia ou a daqueles que ela sempre teve o bom gosto de gravar? Pois enquanto houver uma pessoa sensível, uma noite, um amor, ela jamais será esquecida. Pois já disse Guimarães Rosa, há pessoas que não morrem. Ficam encantadas.
Eu só digo
Eu só digo o que penso, só faço o que gosto e aquilo que creio
E se alguém não quiser entender e falar, pois que fale!
Eu não vou me importar com a maldade de quem nada sabe
E se alguém interessa saber, sou bem
feliz assim!
Muito mais do que quem já falou ou
vai falar de mim! (Maysa, "Resposta", 1970).
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Dois não como digo
dois oceanos
não pacíficos.
"Maysa são dois
olhos e uma boca"
(Manuel Bandeira).
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