Memória de Charquetti, o cavaleiro Percival
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 23 de dezembro de 1987
O bar do Jovino não é mais. É hoje uma funerária - que destino funesto para um botequim um tanto selvagem mas gostoso e autêntico naqueles primeiros anos da década de 60, quando repórteres e gráficos de O ESTADO, há poucos metros, na mesma quadra da rua Barão do Rio Branco, ali faziam aperitivos e comiam um reforçado sanduíche de queijo e mortadela - ignorando a (pouca) limpeza que nunca foi o forte do bom Jovino (por onde andarás? Sua última referência era Guaratuba, anos atrás).
Na quadra seguinte, o velho Bar-Café Palácio, com suas portas de vai-e-vem, no melhor estilo dos saloons dos filmes de bang-bang, mesas de madeira lavada e uma convivência da madrugada que irmanava dondocas elegantes a sofridas prostitutas - desde que, umas & outras, acompanhadas por cavalheiros e "bem comportadas" (regra até hoje imutável, embora as damas da noite tenham desaparecido), jornalistas, artistas, políticos e toda uma fauna que, então não se assustava com os preços do filé grisset ou churrasco completo - hoje tão caros quanto um prato refinado no Ile de France.
Um pouco mais adiante, o velho bar Lisboa (ou seria Coimbra?), que, naturalmente, era de um simpático e bigodudo lusitano, complacente com os papos "daquele pessoal da imprensa" que atravessava a madrugada.
Se não fossem bares numa mesma rua, poderia até se classificar de um triângulo da boêmia imprensa, numa época em que o jornalismo ainda era sinônimo de (feliz) boêmia - e não assepticamente (e que chega a ser frio e cruel emocionalmente) em horários rígidos, como nos dias de hoje, com a informática substituindo os antigos linotipos, calandras, telha e clichês - memórias para um museu da imprensa.
Deste período, destes endereços da noite, ficaram imagens que comportam o roteiro para um filme-emoção documentando o Charquetti - o inesquecível Percival Charquetti (Cerro Azul, 22/7/1919 - Curitiba, 24/12/1985), infalivelmente chegando na antiga redação d'O ESTADO DO PARANÁ lá pelas 20 ou 21 horas (afinal, o fechamento da redação nunca acontecia antes das 23 ou 24 horas, com a reportagem trabalhando até o último momento do inesquecível "Barriga" - Antônio Luiz Vieira - gritar, a plenos pulmões, que "o jornal está fechado" - e já eram 4 horas da madrugada).
Charquetti era um nome já lendário na imprensa quando, ainda adolescente, comecei a trabalhar como repórter em O ESTADO - com o saudoso Milton Camargo de Oliveira e o então jovem, e brilhante Enock de Lima Pereira, premiado há pouco como contista revelação, chefiando as (independentes) equipes de reportagem d'O ESTADO e da vibrante "Tribuna do Paraná, comandada por João Féder, pleno de idéias e fazendo do vespertino um jornal de grandes emoções culturais e sociais.
Charquetti, vencedor da segunda edição do Prêmio Esso de Reportagem, em 1956, com a série "Garimpo, Canaã de ilusões" - fato que até hoje é lembrado em placa de bronze, na redação - era uma espécie de repórter policial. Aurélio Benitez, idade jamais revelada mas um dos dois únicos remanescentes na ativa (o outro é Raphael Munhoz da Rocha, editor de turfe) dos fundadores do jornal, comentava sempre que era difícil saber se "Charquetti escrevia a mão e corrigia na máquina ou corrigia a mão o que escrevia na máquina" tal a confusão na apresentação de suas matérias. Mas se a limpeza do papel não era o forte, as reportagens de Charquetti traziam aquela gana, aquele estilo tão seu, o faro do repórter que desde 1945, começando no hoje extinto O DIA, sempre foi um dos mais admirados profissionais de nossa imprensa.
Charquetti, o jornalista de texto brilhante, repórter que sem fazer anotações conseguia melhor desenvolver qualquer assunto, tão admirável quanto a sua outra face - o médico que, durante o dia, percorria centenas de quilômetros na antiga Estrada da Ribeira ou na BR-116, ainda em fase de implantação, atendendo os chamados arrigós nos acampamentos de trabalho do DNER, cuja cooperativa servia com a maior dedicação desde maio de 1954.
O jornalista e o médico se confundiam na grandeza de uma pessoa que nunca pensou em cobrar uma consulta e sempre se dispôs, em qualquer hora, atender quem o procurasse. Quantas dezenas de jornalistas e familiares foram por ele socorridas, encaminhadas aos hospitais nos quais operava (sempre um notável cirurgião, mas que também, fazia a clínica geral e total na diversificação da clientela que o procurava), desde a mais séria complicação médica até a medicação de antibióticos para os colegas mais jovens, contaminados por uma blenorragia, até motivo de saudade nestes dias aidéticos de terror sexual.
Não foi sem razão que Hélio Teixeira, quando correspondente da Veja em seus primeiros tempos, ao receber uma pauta sobre "médicos ao estilo dos personagens de A. J. Cronim, que pensam no doente antes de fazer dinheiro" não teve dificuldades em escolher Charquetti como símbolo desta categoria em extinção). Na simplicidade de sua vida e de seu comportamento - jamais preocupado em trocar o velho terno surrado, rasgado, sapatos sujos de barro, barba branca que lhe dava um ar de Ho-Chi-Min, Charquetti sempre foi uma imagem de ternura, amado por quem o conhecia, respeitado como profissional.
Um total desapego ao dinheiro - capaz de dar o último centavo a quem necessitasse, recusando-se a cobrar honorários, Charquetti morreu pobre e sem ter merecido, até hoje, dois anos depois, as homenagens que mereceria. Excelente texto, nos quais trazia a linguagem do homem do Interior - que tão bem conhecia e vivenciava, admirava Guimarães Rosa e em seus (poucos) contos, alguns deles inclusive premiados nacionalmente, transmitia um estilo único e especial de linguagem paranaense. A reunião de suas melhores reportagens - além da premiada "Garimpo, Canaã de Ilusões", a cobertura da revolta dos posseiros no Sudoeste, há 30 anos, que cobriu ao lado do fotógrafo Oswaldo Jansen - merece um livro especial, idéia que aqui lançamos quando de sua morte, há dois anos, mas que, infelizmente, ficou desaquecida - com o passar do tempo.
Difícil definir uma pessoa como Charquetti, um tipo inesquecível daqueles que mereciam perfis na velha Seleções do Reader's Digest, em sua grandeza de um cavaleiro idealista, como o seu homônimo das lendas do Rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda - Charquetti buscou, em toda a sua vida, o Santo Graal da paz e do amor entre as pessoas.
Guimarães Rosa, que ele admirava em seu estilo, no profético discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, poucas horas antes de sua morte, disse que há pessoas que não morrem, ficam encantadas.
Charquetti é uma destas pessoas. Por isto mesmo, o seu encantamento - a passagem daqui para um outro Universo (que, como parapsicólogo, sempre investigou) tinha que ser mesmo numa data muito especial: na tarde de 24 de dezembro, há dois anos.
Pixinguinha morreu dentro de uma Igreja.
Charquetti morreu na véspera do Natal.
Pode ser simples coincidência. Mas que bela coincidência!
LEGENDA GRAVURA: Dois anos sem Charquetti: saudade dos amigos.
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