Na canção de Caetano o protesto do poder
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 22 de novembro de 1984
ACUSADO muitas vezes de ter se afastado da política e mesmo compactuado, em seu silêncio, com o sistema, o baiano Caetano Veloso dá uma resposta significativa em "Podres Poderes" - faixa que deve puxar o seu novo elepê, e que em gravação mix, já vem sendo divulgada intensamente nas AMs e FMs. Uma canção que ao lado de seu vigor instrumental, tem uma letra entre o crítico e o pessimismo, com muitas indagações. E que, com toda razão, identificar-se-á com a ampla faixa de público que há duas décadas se mantém fiel ao compositor baiano.
Caetano começa, por exemplo, dizendo sem meias palavras:
Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Motos e fuscas avançam os sinais vermelhos
E perdem os verdes / Somos uns boçais
Ironicamente, no verso seguinte diz:
Queria querer gritar setecentas mil vezes
Como são lindos, como são lindos os burgueses
E os japoneses / Mas tudo é muito mais
Nas indagações do terceiro verso, a perplexidade de uma geração:
Será que nunca faremos senão confirmar
A incompetência da América Católica
Que sempre precisará de ridículos tiranos?
Será será que será que será
Será que essa minha estúpida retórica
Terá que soar, terá que se ouvir
Por mais zil / anos?
Caetano Emanuel Viana Teles Veloso, aos 42 anos - completados no dia 7 de agosto - mostra uma presença zangada. E em sua constatação, não deixa de ter uma consciência tropicalista.
Enquanto os homens exercem seus podre poderes
Índios e padres e bichas, negros e mulheres
E adolescentes / Fazem o Carnaval
Caetano não aceita o imobilismo, ao se posicionar no verso seguinte:
Queria querer cantar afinado com eles
Silenciar em respeito ao seu transe, num êxtase
Mas tudo é muito mau
Sabendo colocar lirismo e a visão social, Caetano metralha a seguir; em forma de indagação:
Ou então cada paisano e cada capataz
Com sua burrice fará jorrar sangue demais
Nos pantanais, nas cidades, caatingas
E nos gerais?
Músico e poeta, Caetano elege sonoros oásis de esperança entre o seu pessimismo, citando disfarçadamente admirações por Hermeto Pascoal, Antônio Carlos Jombim (Tim) e Milton Nascimento
Será que apenas os hermetismos pascoais
E os tons e os mil tons, seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvaram dessas trevas
E nada mais?
Ao longo de sua obra, Caetano por várias vezes propôs novas formas de poesia. Nem sempre foi entendido - ou demorou para sê-lo. Neste verão de mudanças políticas, sua nova canção oferece-se para diferentes leituras e interpretações. Basta prestar atenção.
Enquanto os homens exercem seus podre poderes
Morrer e matar de fome, de raiva e de sede
São tantas vezes gestos naturais
Mas não há apenas ironia e melancolia em suas palavras. O final é aberto e pode ser visto como esperança no futuro:
Eu quero aproximar meu cantar vagabundo
Daqueles que velam pela alegria do mundo
Indo mais fundo / Tins e bens e tais
xxx
Por certo, "Podres Poderes" se ouvirá muito nas próximas semanas. Caetano Veloso mostra que pode-se cantar a perplexidade e a verdade, com poesia e navalhadas na realidade. Está aí para quem quiser ouvir / ver / ler.
LEGENDA FOTO - Caetano: podres poderes
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