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Aramis

Quando Godard conta sua história do cinema

Fortaleza O primeiro concorrente na categoria de longa-metragem "Mr. Universe", que, na manhã de sexta-feira, 24, levou os madrugadores jornalistas e críticos reunidos nesta ensolarada cidade ao Cine São Luiz, acabou sendo visto por menos de dez espectadores. Por razões que não foram explicadas, a cópia enviada era falada em húngaro, naturalmente, mas sem legendas - a não ser quando os personagens utilizam o inglês - então com legendas em húngaro. Inteligível apenas várias citações - de Griffith a Ingrid Bergman, que, em inglês, falam do cinema. "Mr. Universe" é um filme "On the Road" sobre três húngaros que deixam seu país para tentar a vida nos Estados Unidos e sonham em conquistar o sucesso no cinema, nos passos que Mickey Hartigay, obteve: após ter vencido o concurso, de Mr. Universo, o musculoso húngaro acabou sendo um dos maridos da atriz Jayne Mansfield (famosa pelo volume de seus seios, falecida há mais de dez anos) e estrelado um série de bangue-bangues e pseudo-históricos, inclusive na Itália. Mas os seus compatriotas não conseguem chegar ao mundo mágico do cinema: ficam na estrada, anonimamente, enquanto Hartigay, envelhecido, ao lado de suas filhas, aparece dizendo que não pensa mais em cinema. Dentro de um festival em que o mundo das imagens, em todas as bitolas, no vídeo e na televisão ocupa pelo menos 18 horas por dia de mais de mil convidados - e aproximadamente 5 mil frequentadores nas diversas salas - nada mais significativo do que o próprio cinema seja o tema de tantos produtos em apresentação. Das salas de cinema - como em "Minas Texas", do brasileiro Carlos Prates, em competição amanhã (4ª feira) ou lirismo de "Splendor", em que Ettore Scola faz a crônica das últimas sessões de um cinema de uma pequena cidade da Itália (também em exibição amanhã, mas hor concours) - conforme registramos em nossa coluna de domingo, até o verdadeiro ensaio visual que Jean Luc Godard realizou, para a televisão francesa, com a sua visão da "Histoire(s) du cinema" (em duas partes, exibidos ontem à noite), a reflexão que o cinema possibilita está nas próprias imagens dos trabalhos vindos de várias partes do mundo que foi possível reunir para este VI Festival Internacional de Cinema, Vídeo e Televisão. Até a simplicidade de uma produção portuguesa, igualmente apresentada hor concours, "Recordações da Casa Amarela", de João Cesar Monteiro, o cinema se faz presente. Na Lisboa, de 1989, um homem de meia idade leva uma vida pobre e miserável num quarto de pensão. Atormentado pela doença e por uma série de adversidades, o homem passa o dia ouvindo Schulbert e indo ao cinema para fugir de sua solidão. E o cinema, como legítima usina de sonhos, no escapismo que o fez um entrevisto hoje com uma visão humana - até um pouco crítica. Histoire(s) du cinema O poeta Paulo Leminski (1944-1989), que há 27 anos era um dos primeiros curitibanos a se fascinar com os filmes de Jean Luc Godard, que o cineclubista José Augusto Iwersen trazia para as sessões do cine de arte Riviera - e que encontravam na lucidez crítica de Lélio Sottomaior Jr., seu maior entusiasta, vibraria com "Histoire(s) du cinema: uma co-produção La Sept/Canal Plus/Gaumont, prevista para uma série de emissões - e cujos dois primeiros capítulos, em absoluta primeira mão, foram trazidos para serem exibidos na sessão informativa do FestRio-Fortaleza-89. O próprio Godard, 59 anos, calvície em andamento - e uma grande semelhança com o curitibano Ari Fontoura (conforme observação do ferino crítico Edmar Pereira, do "jornal da Tarde" é o condutor deste projeto fascinante. Ele aparece como uma espécie de apresentador, defronte sua máquina de escrever (cujo som interfere, às vezes até de forma irritante, em vários momentos - como se fosse uma demonstração clara de que Godard está escrevendo um daqueles ensaios que entusiasmavam toda uma geração que, nos anos 50, devorando as edições capa amarela do "Chahiers du Cinema", aprendeu a ver/ler/entender o cinema em outros prismas - numa valorização de cineastas (Alfred Hitchcock, Samuel Fuller, Nicholas Ray e até Jerry Lewis) até então desprezado pela dita "inteligentzia". Godard desenvolve ao longo dos 104 minutos de "Histoire(s) du cinema uma legitima reflexão em torno do cinema, recontada por ele, falando de sua anunciada "crise", da "morte" mas demonstrando que esta foi a invenção do século. Trabalhando com um imenso material - centenas de fragmentos de filmes clássicos e produções anônimas (um desafio para os cinéfilos é identificar o que se vê, em frações de segundos, projetados no vídeo), as citações são entremeadas de intertítulos e frases, que, numa montagem inteligente, no uso das próprias letras, adquirem um sentido de poesia concreta espontânea. Assim, muito mais do que uma simples antologia de seqüências ou cenas isoladas (além do aproveitamento de fotogramas fixos), o trabalho de Godard adquire uma dimensão de reflexão-poética imaginástica em torno do cinema: seus mitos, seu fascínio, suas ilusões, suas verdades e mentiras. A moviola - com que abre estes dois capítulos - é a "estrela", que possibilita a fixação dos fotogramas e uma (reapreciação detalhada de alguns momentos antológicos - como a seqüência final em que Jennifer Jones, no auge de sua beleza, escala a montanha onde está morrendo. O seu malditamente amado herói (Gregory Peck) no clássico western "Duelo ao Sol" (Duel in the Sun, de King Vidor). Godard consegue, ao fracionar uma seqüência como esta, dar toda uma nova (re)dimensão do cinema. É lamentável que "Histoire(s) du cinema" dificilmente tenha exibições comerciais no Brasil - mesmo na televisão educativa, pois por questões contratuais, a utilização de fragmentos, cenas e mesmo fotogramas de inúmeros filmes só foi autorizada para sua emissão na França. Só devido ao prestígio de Alberto Marcnat, assessor do diretor de televisão e vídeo do FestRio, Hamilton Costa Pinto, na França (onde reside), possibilitou que La Sept, co-produtora desta série, autorizasse a exibição, apenas no FestRio-Fortaleza, da forma que Godard reconta a sua visão da arte cinematográfica, num trabalho tão inteligente, criativo (mas como sempre polêmico) que nos lembra sua estréia, há exatamente 30 anos, com "Acossado" (About the Soufflem, 1959). Justamente por esta vitalidade e, sobretudo, desafio a reflexão é que Godard, se aproximando dos 60 anos, continua a ser aquele "enfant terrible" que provoca tantas paixões (e ódios) entre cinéfilos de todo o mundo. LEGENDA FOTO - "Mr. Universe", filme húngaro, abriu a mostra competitiva do FestRio-Fortaleza, mas não se classifica: afinal, o público não entende húngaro e a cópia estava sem legenda.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
28/11/1989

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