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Aramis

Quando Hollywood sofreu com o histerismo da "Caça às Bruxas"

Hollywood Cada manhã, para ganhar o meu pão Vou ao mercado onde compram mentiras. Cheio de esperanças Entro na fila dos vendedores (Bertold Brecht, 1898-1956) xxx Qual a atualidade que um filme abordando fatos ocorridos há quase 50 anos pode ter neste final de milênio? Teria sido aquilo que se chama de Macarthismo mais cruel do que as perseguições sofridas por décadas por intelectuais, artistas e opositores do governo soviético? Hoje, quando a URSS já não existe, a guerra fria acabou e uma nova ordem mundial se aproxima para o terceiro milênio, revolver velhas feridas pode até ser discutível para muitos. Entretanto - mesmo com tais questionamentos - "Culpado por Suspeita" (cine Ritz, 2ª semana, 5 sessões, à disposição em vídeo, lançamento da Look neste mês) é uma das obras mais contundentes para o entendimento da história contemporânea. Passado meio século da Caça às Bruxas, a história anticomunista que perseguiu, condenou e mesmo levou à morte alguns nomes mais importantes da inteligência americana, mantém-se como uma fase pouco conhecida - e raramente exposta em filmes. Afinal, Hollywood, como a Usina de Sonhos que sempre foi, nunca teria interesse em remexer num passado tão incômodo. Por mais de dez anos, quando as imagens iluminadas de sonhos & fantasias eram vendidas, como nunca, internacionalmente, numa época da maior prosperidade do cinema americano (1947/56), na mística Hollywood, um drama sem fantasia, sem happy end para centenas de pessoas, acontecia. Isto é o que um produtor-diretor corajoso e honesto, Irwin Winkler, baseado em fatos reais, num roteiro preciso, enxuto e principalmente corajoso denuncia nos 105 minutos de "Guilty by Suspicion". Hollywood tem, é verdade, buscado fazer uma catarse em dezenas de filmes, muitos deles dolorosamente cruéis e nem mesmo as 345 páginas do fundamental "Hollywood's Hollywood - The Movies About The Movies" de Rudy Behlmer e Tony Thomas (Citadel Press, 1975) esgotam o assunto. Passaram-se já 17 anos do lançamento desta obra e uma atualização incluiria novos títulos, inclusive os que, nestas últimas duas décadas tem tocado num tema que, até os anos 70, era tabu: a perseguição que a Comissão de Atividades Anti-Americanas (HUAC), do Congresso nacional, com a participação do FBI, do próprio governo e dos estúdios, fez em duas etapas, entre 1974 até meados dos anos 60 (*). À todos os suspeitos de terem participado do Partido Comunista - e mesmo de entidades liberais, contrários ao nazifacismo, nos anos 30/40, desenvolveu-se uma perseguição de uma forma que, revista hoje, parece absurda mas que, de certa forma, nos remete a um passado não tão distante assim em nosso país - os anos de fogo da ditadura militar a partir do golpe de 1º de abril de 1964, intensificando-se especialmente de 1968 em diante. Assim, um filme como "Culpado por Suspeita" é o exemplo daquilo que, insistimos em classificar de Cinema de Utilidade Pública. Um filme de verdades - embora ficionando certos fatos, direto, objetivo, em certos momentos com uma amarga sensação de documentário de uma época que, tal como os crimes do nazismo (e de Stalin) não devem serem esquecidos - mas, sim, conscientizados para que não se repitam. Pena que mais uma vez a "inteligente" coordenação (sic, sic, sic) do setor de cinemas da Fucucu não tivesse competência para saber aproveitar melhor um filme como este. Se houvesse realmente uma filosofia cultural, dentro de uma instituição que consome mais de Cr$ 10 milhões/dia, o lançamento de uma obra como "Culpado por Suspeita" - que desde sua pré-estréia no Festival de Cannes, no ano passado, vem provocando as mais intensas polêmicas - deveria ser feita com uma mesa-redonda, a qual juristas - como o professor René Dottti (um estudioso do MacCarthismo), políticos, escritores, intelectuais, lideranças sindicais, estudantes etc., poderiam, devidamente motivados, discutirem não só o filme, em termos estéticos, mas principalmente as idéias, as denúncias, a realidade que Irwin Winkler colocou nesta sua obra em que após 2 anos na pré produção (**), marca sua estréia como diretor-roteirista. Nota-se nas sessões do cine Ritz uma presença de público jovem, que, com razão, desconhece o que foi MacCarthismo, não identifica os nomes reais que aparecem na tela e no primeiro momento pode ficar confuso. Felizmente, Winkler foi didático: tanto na abertura como no final, há letreiros explicando a perseguição política - e os males que trouxe para a Democracia, que, teoricamente, estava sendo preservada e defendida pelos radicais que provocaram a histeria anti-comunista nos EUA dos anos 40/50. xxx O roteiro de "Culpado por Suspeita" é simples. David Merril (Robert De Niro), jovem e talentoso diretor, retorna da França, onde estava preparando as locações para um novo filme e depara-se com a acusação de que, por ter, em sua juventude, participado de reuniões a favor da paz, passou a ser suspeito de comunista. Com dignidade, recusa-se a delatar nomes de colegas - como desejavam os membros do Comitê e, em conseqüência, perde o emprego e passa a ser implacavelmente perseguido. Não encontra condições de sobrevivência - mesmo numa modesta loja de aparelhos de cinema, em Nova York, é infernizado pelos agentes do FBI, seus amigos afastam-se e assiste uma derrocada de conscientes por parte de companheiros, que pouco a pouco, vão fazendo o jogo sujo exibindo por estúdios e políticos de Washington: entregar companheiros por supostas ligações subversivas. A proporção que o espectador tenha maiores informações sobre quem foi quem nos anos 40/50, entre os nomes citados nos diálogos terá melhor identificação ao universo político retratado por esta obra extraordinária, que termina por um hino a dignidade. Nisto, aliás, há nítidas semelhanças entre este recentíssimo (1991) filme como o precursor e corajoso "Testa de Ferro por Acaso" (The Front), que Martin Ritt (1920-1990) realizou há 16 anos. Naquele filme - que muitos confundem como um filme de (e não com) e hoje popularíssimo Woody Allen, ele interpreta um anônimo caixa de um bar que, por amizade a um amigo de escola, transforma-se num famoso escritor de roteiros para a televisão sem escrever uma única palavra: assina textos de nomes que estão nas "Listas Negras", impedidos de trabalhar acusados de comunistas ou apenas simpatizantes do comunismo. Howard Prince, o personagem, torna-se um roteirista famoso, mas os filmes que "escreve" acabam levando-o a ser investigado pelo Comitê, e quando insistem que ele cite nomes, ao menos que seja de um amigo ator que acaba de suicidar-se pela angústia do desemprego (interpretado por Zero Mostel, que foi vítima real do MacCarthismo), levanta-se calmamente, encara os inquisidores e diz: - "Amigos, eu não reconheço o direito deste Comitê ao me fazer esse tipo de perguntas. Além do mais, vocês todos que se f...". Uma seqüência sem diálogos encerra o filme: Prince, algemado, beija a namorada e é levado para a prisão e enquanto na trilha sonora a voz de Frank Sinatra canta "Young at Heart" (Richard e Leight), os letreiros, com os créditos finais, relacionam algumas das vítimas do MacCarthismo. Sem utilizar o mesmo recurso - de citar nomes - Winkler também encerra o seu filme, com Merril e a esposa, Ruth (Annete Bening), partindo para a prisão, com uma emocionante lição de dignidade. O exemplo de quem não vendeu sua alma ao diabo, sofrendo a prisão mas mantendo o respeito e a honestidade. Consagrado homem de teatro - ator e diretor, fundador do grupo Oficina, jornalista, crítico Fernando Peixoto, 54 anos, publicou o ano passado "Hollywood - episódios da História Anticomunista" (Editora Paz & Terra, 189 páginas) obra que, juntamente com "Caça às Bruxas - MacCarthismo, uma tragédia americana" (LP&M, 1990), se constituem em leituras fundamentais para se entender melhor um filme como "Guilty by Suspicion". Peixoto e Argemiro, cada um a sua maneira - e ambos baseados em longa pesquisa no material disponível (que não é tão ampla quanto se imagina) procuraram situar a paranóia do anticomunismo atingindo violentamente Hollywood - mas depois estendendo-se a outros setores - dentro da história, dos fatos políticos e sociais que se sucederam ao fim da II Guerra Mundial. Peixoto, por exemplo, lembra que "foi montada uma paranóica máquina de traição e medo: a guerra fria, e as autoridades norte-americanas que a promoviam, necessitavam cultivar a fantasia e o pânico. E os famosos nomes de Hollywood seriam a ajuda inestimável para desencadear uma ampla campanha publicitária de um patriotismo doentio. Inclusive para dar início a um processo que se estenderia, em seguida, como na época muitos advertiam, para outros campos profissionais". xxx Valeria a seriedade, o sentido político de "Culpado por Suspeita" para fazê-lo um dos filmes mais importantes da temporada - e com sua oportuna edição em vídeo, em lançamento da Look proporcionando que maior número de espectadores o conheçam. Entretanto, cinematograficamente é um filme bem estruturado, com um elenco de primeira linha - que traz inclusive artistas que sofreram perseguições - como San Wanamaker, que a exemplo de vários colegas teve que se exilar em Londres - aqui interpretando o advogado Félix Graff, inspirado em Martin Gang, intermediava entre os inquisidores, os tycoons dos estúdios e os artistas, cineastas, roteiristas, cineastas etc., que concordavam em delatar colegas para não perderem "seus empregos e suas piscinas", como ironizou Orson Welles (1915-1985), que, por pouco, escapou da lista negra - mas sem denunciar ninguém. Joan Scott, viúva do roteirista Adrian Scott, um dos "Dez de Hollywood", também faz uma ponta do filme (***). O personagem Merril é uma fusão de vários cineastas, mas em parte lembra John Berry (Nova York, 1917), ator infantil e que mais tarde foi companheiro de Welles em seu Mercury Theatre, dirigindo filmes nos EUA e na França, para onde exilou-se após ter, em 1950, feito o documentário em 16mm "The Hollywood Ten", com o objetivo de angariar fundos para custear gastos dos processos (*). Haveria várias referências e detalhes que poderiam serem feitas em relação a personagens reais citados - direta ou indiretamente - no filme, a partir do produtor Daryl F. Zanuck (1902-1977), ou a seqüência final de "Matar ou Morrer" (High Noon, 52, de Fred Zinnemann) - que produzia por Carl Foreman (também vítima de perseguições), com Gary Cooper (delator, direitista) e Grace Kelly, foi, ironicamente, uma sutil crítica ao MacCarthismo. Só que ao contrário do que o filme mostra em que vários diretores se sucedem na realização deste clássico western premiado com Oscars de melhor ator/Cooper; trilha sonora e canção) foi realizado apenas por Zinnemann, 85 anos, aliás, um dos cineastas que manteve sempre a dignidade. Notas (*) Além de "Testa de Ferro por Acaso", o Macarthismo foi tema em "Nosso Amor de Ontem" (The Way We Were, 73, de Sidney Pollack); "Julia", de Fred Zinnemann (1977), "Pesadelo na Rua Carrol" (House on Carrol Street, 88, de Peter Yats), e o também vigorosíssimo "Na Lista Negra" (Fellow Traveller, 89, de Philip Saville), exibido no IV FestRio-Fortaleza (23-11-1/12/189), inédito comercialmente no Brasil. (**) Inicialmente o projeto de Winkler era convidar o francês Berthard Tavernier ("Ao Redor da Meia Noite") para dirigir "Culpado por Suspeita", com assistência de John Berry, que trouxe um dos "10 de Hollywood" - Abraham Polonsky - para escrever o roteiro. Polonsky abandonou o projeto, devido a divergências no tratamento do tema e Tavernier também decidiu afastar-se quando ficou decidido que a ação se passaria nos EUA e não na França (em "Na Lista Negra", a ação transcorre em Londres, onde está um diretor exilado). Winkler assumiu a direção. (***) Em setembro de 1947, 41 personalidades de Hollywood haviam sido citadas para comparecer ao Comitê de Atividades Antiamericanas em Washington. Destas, 19 assumiram a posição de não aceitar o Comitê por julgá-lo anticonstitucional e ficaram conhecidos como os 19 não Amigáveis (The Unfriendly Nineteen). Eram Alvah Bessie, Hebert J. Biberman, Bertold Brecht, Lester Cole, Richard Collins, Edward Dmytryck, Gordon Kahn, Howard Kock, Ring Lardner Jr., John Howard Lawson, Albert Maltz, Lewis Milestone, Samuel Ornitz, Larry Parks (o único ator da lista), Irveing Pichel, Robert Rossen, Waldo Salt, Adrian Scott e Dalton Trumbo. Quatro, depois, mudaram de atitude e se tornaram "amigáveis", delatando (Collins, Parks, Rossen e Dmytryck). Trumbo e Lardner, mais tarde, se declararam anticomunistas. LEGENDA FOTO 1 - Robert De Niro interpreta David Merril, jovem e talentoso cineasta que é perseguido pelo Macarthismo, que fez dezenas de vítimas - como Joseph Losey (1909-1984), em "Culpado por Suspeita" recriado por Martin Scorcese, também diretor. LEGENDA FOTO 2 - "Culpado por Suspeita", em filme e vídeo, uma visão corajosa sobre uma das fases mais vergonhosas da história recente dos Estados Unidos. O filme esteve em Cannes no ano passado e tem provocado discussões em muitos países.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
2
02/02/1992

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