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Aramis

Um homem, uma mulher e a amizade colorida

"O tempo, que fortalece as amizades, enfraquece o amor". (La Bruyère) Existem centenas de formas diferentes de contar a mesma história contada milhares de vezes. Nora Ephron, cujo talento de escritora foi tão bem demonstrado em dois filmes de Mike Nichols - o político "Silkwood - O Retrato da Coragem" (Silkwood, 1983) e o romântico-dilacerante "A Difícil Arte de Amar" (Heartburn, 1986), demonstra isto mais uma vez. Com o roteiro de "Harry e Sally - Feitos um para o Outro" (Cine Astor, hoje e amanhã, 5 sessões) comprova que assim como não há papéis sem importância numa peça ou filme, também não há histórias que não possam ser (re)contadas com emoção e ternura - desde que haja competência. Sua indicação ao Oscar de melhor roteiro original por "When Harry Meet Sally" foi mais do que merecido e se Tom Schulmann acabou levando a dourada estatueta por "A Sociedade dos Poetas Mortos" (Cine Bristol), não desmerece, em absoluto, a sua nomination. Ao contrário, a valoriza sobremaneira. Partindo de um axioma que há três séculos levava La Bruyère (1645-1696) fazer afirmações em seu "Os Caracteres", como "Le temps, qui fortifie les amitiés, affaiblit l'amour" ou "O amor e a amizade excluem-se mutuamente", mas dentro de uma ótica de nossos dias, cruel e altamente polêmica - "Não há amizade entre um homem, uma mulher - o sexo interfere" - que o personagem Harry repete exaustivamente ao longo do filme, adquire, ironicamente, outra conotação. Justamente de uma amizade entre um homem e uma mulher, calejados por respectivas desilusões amorosas, é que pode ser recriado - ou encontrado - o grande amor. Romântico sem ser piegas, "Harry e Sally - Feitos um para o Outro" é daqueles filmes-intimidade, que de quando em quando surgem para enaltecer valores humanos e que, sem pretensão, atingem o espectador sensível. Não há dramas que provoquem lágrimas, ou grandes questionamentos - mas trata de gente como a gente - só que emoldurados no fascínio nova-iorquino, freqüentando livrarias, restaurantes, museus, o Central Park ou a 5ª Avenida da Big Apple. Tudo isto ao som de uma das mais belas trilhas sonoras produzidas para um filme americano nestes últimos anos (ver texto nesta mesma página), conduzindo personagens (e espectadores) a um universo de standards da canção americana em seus momentos iluminados. Com um roteiro preciso, cenários e personagens bonitos, música maravilhosa e, sobretudo, muito romantismo, seria de se esperar que um filme como este pudesse atingir ao menos em parte o público que consagrou filmes como "Em Algum Lugar do Passado" ("Somewhere in Time", 80, de Jeanot Szwarc) ou "Amor sem Fim" (Endeless Love, 81, de Franco Zefirelli), obras de forte apelo aos jovens românticos. Só que Rob Reiner, 32 anos, o diretor, não buscou o romantismo-fantasia de Szwarc ou o estilo Romeu e Julieta do italiano Zefirelli. Filho de um cineasta (Carl Reiner, 67 anos, realizador de comédias excelentes como "Cliente Morto não Paga"), ator em sua adolescência (em 1962 aparecia em "Papai Precisa Casar", de Vincent Minelli), Reiner pertence a uma nova geração de realizadores que buscam abordar temas atuais, embora com uma sensibilidade que os remete a uma pureza nostálgica. Assim fez em seu "Conta Comigo" (Standy by Me, 86), de um conto de Stephen King (ao lado de "O Iluminado", seu melhor roteiro adaptado ao cinema) e, em 1987, revisitando o gênero espada & feitiçaria faria o brilhante "A Princesa Prometida" (The Princess Bride", 1987). Neste "Harry e Sally - Feitos um para o Outro", a exemplo de "Conta Comigo", Reiner volta-se para o grande, imenso e sempre universal tema da amizade. Em "Stand by Me", era a história de um grupo de adolescentes ao longo de uma aventura de verão, na procura de um cadáver. Agora, há uma viagem intemporal de dois jovens ao longo de 12 anos de suas vidas: em 1967, Harry e Sally, recém formados pela Universidade de Chicago e, dividindo as despesas, partem para uma viagem a Nova Iorque - onde cada um quer realizar seus projetos. Uma antipatia inicial impede qualquer relacionamento mais íntimo, que prosseguiria, ao reencontrarem-se cinco anos depois - ambos já comprometidos com outras pessoas e seguindo seus caminhos: ele, consultor político; ela, jornalista de prestígio. Passam-se mais cinco anos um novo reencontro - desta vez sem fagulhas e farpas, mas o início de uma amizade que, por uma década, Harry colocava como impossível entre um homem, uma mulher - sem a condicionante do sexo. Cada um, desta vez, curtindo separações, iniciam um relacionamento de amizade - que ao chegar a um envolvimento colorido os leva a uma crise pessoal, um afastamento temporário, mas, ao final, há uma real compreensão. Aparentemente, nada de novo. Rapaz encontra moça, separam-se, reencontram-se, transam, brigam, finalmente são felizes. Um esquema explorado inúmeras vezes no cinema ou no teatro - desde a crueldade com que David Mamet colocou em sua peça "Perversidade Sexual em Chicago" (levado ao cinema em 1986, em "Sobre Ontem a Noite...") - e que totalmente destruída em seu conteúdo, foi apresentada na semana passada no Teatro Guaíra - até as mais adocicadas versões. Só que no caso de "When Harry Meet Sally", houve um seguro roteiro, direção mão-leve e inventiva, inclusive com a intercalação de clips-depoimentos de septuagenários casais felizes - lembrando a técnica que Warren Beaty empregou em "Reds" (1981) - com historiadores intercalando a cinebiografia do jornalista John Reed (1887-1920). Da forma que Reiner utilizou este recurso, o filme ganhou um elemento a mais - de ternura e exaltação ao amor, pois sem deixar de ser uma obra que se insere na linha de exaltação aos valores da monogamia, do casamento e mesmo da fidelidade - não há nesta comédia romântica a canalhice moralista de um "Atração Fatal" (87, de Adrian Lynne) ou mesmo a visão maniqueísta do recente "A Guerra dos Roses" (1989), de Danny De Vitto). Ao contrário, a história de Harry e Sally flui tranqüilamente num rio de universal entendimento, capturada em belíssima fotografia de Barry Sonnenfeld e no qual os personagens se ajustam com perfeição. Billy Crystal, um dos nomes mais populares da televisão americana, conhecido mais no Brasil como apresentador da festa do Oscar, está ótimo, enquanto Meg Ryan ("Viagem Insólita", "Morto ao Chegar", "Top Gun", etc.) é encantadora como Sally. Carrie Fischer ("O Império Contra Ataca", "Guerra nas Estrelas", "Hannah e suas Irmãs") compõe com habilidade a Marie, insegura em seus relacionamentos proibidos, até o encontro com Jess (Bruno Kirby, até hoje pouco notado mas que apareceu em "O Poderoso Chefão - Parte II", "Bom Dia, Vietnã" e "Licença para Amar até a Meia-Noite"), o melhor amigo de Harry - e seu confidente nas (des)venturas amorosas. Outros personagens de composição também estão bem, mas o filme (cujo roteiro poderia dar uma bela peça de teatro) concentra-se neste quarteto. No mínimo, "Harry e Sally - Feitos um para o Outro" é um exemplo de filme que faz bem a quem busca um programa bem realizado com todos os cuidados que um filme honesto deve ter. Para quem quiser, em suas entrelinhas, abre espaço para leituras maiores - e faz com que as imagens deste romance colorido sejam tão belas quanto a sua trilha sonora.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
01/05/1990

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