"Shoah", um documento visual sobre o genocídio dos judeus
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 21 de outubro de 1989
Nos últimos 40 anos, dezenas de documentários procuraram mostrar os horrores do nazismo e, especialmente, do genocídio contra a raça judaica. Cineastas de diferentes nacionalidades, em diferentes ângulos e interpretações, utilizando material de várias procedências, mostraram em médias e longas metragens a irracional perseguição ao povo judeu, os campos de concentração numa denúncia sempre necessária de ser reavivada, especialmente porque o anti-semitismo ainda existe e forças neo-nazistas, em diferentes países, se (re)organizam e permanecem em constante ameaça.
Portanto um documentário como "Shoah", que o jornalista e cineasta francês Claude Lanzmann levou dez anos para realizar é mais do que um simples programa cinematográfico. Pela sua extensão - 9h30 - e seriedade, se constitui numa espécie de curso intensivo sobre a questão judaica, o nazismo, a brutalidade, examinando vários aspectos de um assunto que longe de estar superado - como muitos apregoam - mais do que nunca merece ser revisto.
Tratando-se de um filme especial, para ser visto em duas partes, "Shoah" exige também um tratamento especial para ser apresentado ao público - o que, infelizmente, não aconteceu em Curitiba (ver texto a respeito nesta mesma página), pela dureza do tema abordado, profundidade da realização, este filme de Lanzmann exige espectadores preparados para aceitar um desafio visual. A primeira parte, com 270 minutos está em exibição desde quinta-feira no cine Groff (14 a 19h30), devendo ser apresentado, a partir do próximo dia 26, a segunda parte.
Lançado em Paris no verão de 1985, "Shoah" vem tendo exibições, sempre dentro de esquemas especiais de preparação do público, em várias partes do mundo. No Brasil, sua primeira projeção ocorreu numa mostra paralela do II Festival Internacional de Cinema, Vídeo e Televisão, em novembro de 1985. Posteriormente, a distribuidora Alvorada legendou duas cópias que tem sido apresentadas em circuito especiais.
"Shoah" é um filme que não apresenta explicitamente os horrores dos campos de concentração. Lanzmann, que em 1973 já havia realizado outro documentário importantíssimo ("Por que Israel?/Por quoi Israel?, 1973) buscou um jornalismo com nove horas e meia de entrevistas. Assim, a partir de 1974, quando iniciou o projeto, entrevistou dezenas de participantes do fato: sobreviventes, testemunhas, algozes. Entrevistas às vezes emotivas, torturantes, sempre difíceis, minuciosas. Realizadas em várias línguas: inglês, alemão, francês, hebraico, polonês, idich. Em muitos lugares do mundo: Estados Unidos, Israel, Grécia, Suiça, Alemanha e, sobretudo, Polônia, onde se localizavam os maiores campos nazistas. Em algumas seqüências, sobreviventes são levados às ruínas dos campos onde estiveram (Auschwitz, Treblinks, Sobibor) e narram in loco as suas vivências.
Depois de tantas entrevistas, Lanzmann procurou montar 350 horas de filmagens - reduzindo para nove horas e meia.
Em todos os países onde tem sido exibido nestes últimos quatro anos, "Shoah" provoca debate e estudos. No Brasil, entretanto, pouca coisa foi publicada a respeito - talvez pelo fato do filme ter sido apresentado somente em algumas poucas cidades. Um dos mais completos estudos a respeito foi de Paulo Cesar Souza, 33 anos, autor de "A Sabinada - A Revolta Separatista da Bahia" (Brasiliense), tradutor de várias obras (inclusive "Poemas", de Brecht), que em duas páginas da "Folha Ilustrada" (Folha de São Paulo, 10/1/1988), analisou com profundidade a obra de Lanzmann ("Shoah - o filme, o fato").
Uma das primeiras definições dadas por Paulo Cesar Souza a respeito deste documento foi o seguinte: Uma obra ambiciosa, que busca simplesmente perscrutar o inescrutável. A intenção de Lanzmann foi - creio - realizar uma "summa anthropologica", uma síntese da memória e da reação ao mais hediondo acontecimento, o mais ignominioso crime de que há registro na experiência humana".
Tendo assistido "Shoah" em Israel - e posteriormente visitado (e se emocionado) o campo de Auschwitz, conservado como uma espécie de museu do genocídio nazista, Paulo Cesar Souza fez uma análise de grande profundidade sobre o documentário, buscando aproximações com uma ampla documentação sobre o pensamento nazista, citações de uma obra definitiva a respeito ("The Destruction of the European Jews", do americano Raul Hilbert, 1961), que também trabalhou dez anos fazendo pesquisas em fontes primárias (documentos originais) para publicar um livro de mil páginas, Hilbert foi um dos entrevistados por Lanzmann, que, dentro do possível, procurou ouvir todas as pessoas capazes de falar sobre o genocídio judeu. Mas como observou Paulo Cesar Souza, o filme não é uma simples sucessão de entrevistas. "Através da franqueza de suas perguntas, e de uma sutil orquestração de falas, rostos e lugares, seu diretor obtém um curioso efeito de aproximação entre presente passado, protagonista e espectador, dizendo - ou dando a entender - coisas que jamais foram ditas numa tela. Tratando do destino de um povo que mais que nenhum venerou a Palavra - o "povo do Livro" - é justo que esse filme utilizasse a palavra como meio e que obedecesse à proibição sagrada de representar por imagem. Não há imagens da época em "Shoah".
"Shoah": palavra hebraica que significa "destruição", "ruína", "calamidade" (cf. Isaias 10.30); utilizada em Israel para designar o extermínio dos judeus na Europa nazista; traduzida imprecisamente como holocausto. Holocausto: palavra grega que significa "imolação"; sacrifício aos deuses, no qual a vítima era queimada inteiramente".
Uma obra como "Shoah" não pode (nem deve) ser apreciada como um filme convencional. Extrapola as limitações do sentido de entretenimento como a usina dos sonhos é utilizada normalmente. Ao contrário, é uma forma que Lanzmann, jornalista dos mais conceituados na França, profundo estudioso das questões ligadas a sua raça, procurou para fazer - mais do que num livro ou na imprensa em que atuou por muitos anos - uma exposição ampla da questão judaica. Em 1973, em "por que Israel?" (inédito no Brasil) já levantava vários questionamentos. Em 1985, concluído "Shoah" trouxe ao mundo uma obra mais específica, para ser vista com atenção, com a mesma seriedade com que se estuda um livro de idéias e fatos - para que se compreenda melhor "ao mais ignominioso crime de que há registro na experiência humana", como bem disse Paulo Cesar Souza.
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