Criança, mais do que simples personagem
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 18 de abril de 1989
De Chaplin a Lasse Hallstrom (com esta jóia chamada "Minha Vida de Cachorro"), dezenas de cineastas se voltaram ao universo infantil para sensibilizar públicos das mais diversas latitudes.
Em 1921, Charles Chaplin - cujo centenário de nascimento está merecendo, naturalmente, as maiores comemorações - já mostrava toda ternura capaz de render um filme sobre uma criança em "O Garoto" (The Kid), com Jackie Coogan (1914-1980), então com 7 anos.
E ao longo destas décadas, as crianças têm freqüentado as telas, em retratos nem sempre corretos. Como analisou a ensaísta francesa Jacqueline Nacache ("La Revue du Cinema", fevereiro/88), uma atitude, herdada de Holywood, foi aquela que, de modo perverso, sempre utilizou a criança ou como gerador possante de emoções fáceis ou como um adulto reduzido, suscetível de ser observado com um voyerismo legítimo e aceitável.
A outra atitude que se pode, a grosso modo, considerar como pós-Truffaut, porque foi impulsionada na França por "Les 400 Coups" ("Os Incompreendidos", 1959) e que afirma, ao contrário, que o olhar infantil se transforma no verdadeiro motor do filme. Ou que tal olhar tem qualquer coisa de maravilhoso que decifra e desenha o mundo como os adultos já não o sabem fazer: assumindo todas as desordens, todas as estranhezas da realidade e lhes impondo uma espécie de racionalidade poética.
Não seria na limitação de um texto jornalístico que se esgotaria um tema tão amplo, mas ao espectador atento será fácil estabelecer ligações afetuosas com crianças que, em tantos outros filmes também trouxeram cargas de emoção. Ainda no ano passado, "Esperança e Glória" (Hope and Glory, 88, de John Boorman), mostrava uma visão da guerra em Londres através das crianças - enquanto o francês Louis Malle em "Adeus, Meninos", com toques autobiográficos, também refletia sobre o mesmo período. Em "Minha Vida de Cachorro", como tão bem viu Jacqueline Nacache, não há a guerra para justificar situações absurdas - mas uma sucessão de infortúnios comuns e pequenas alegrias e, especialmente, personagens marcantes, de forma que se sente, em cada seqüência, que todos saíram diretamente de lembranças de infância guardadas pelo tempo, como silhuetas marcadas de sonhos antigos. E é graças a essa estranha filosofia - e as reflexões do pequeno (grande) personagem que os fatos mais diversos acham seu lugar em um mundo talhado de forma grande demais para ele mesmo. Ingemar, sobrevive através do risco e das lágrimas e uma vez que as verdadeiras razões pelas quais a vida lhe sacode tão duramente lhe escapam, ele inventa as suas - com um arrependimento, todas as vezes: a de não ter compartilhado mais tempo com sua mãe quando ainda era bela e suave e podia ouvir e compreender tudo.
Aparentemente com elementos triviais - crianças simpáticas e bonitas, situações tragicodramáticas, animais e uma belíssima fotografia - "Minha Vida de Cachorro" seria um filme fácil para conquistar emoções. Entretanto é muito mais. É uma obra extraordinariamente grandiosa justamente na inversão de sua simplicidade, provando que, mais uma vez, os sentimentos e, sobretudo, a empatia da sinceridade, é que fazem as obras-primas.
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