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Aramis

Gal, a voz perfeita; Angela, canto d'alma

A audição paralela dos novos discos de Gal Costa ("Bem Bom", RCA) e Angela RoRo ("Eu Desatino", Polygram) podem justificar algumas considerações. Intérprete das mais afinadas, carreira hoje internacional, a baiana Maria da Graça Costa Pena Burgos, 40 anos completados em 26 de setembro, é há muito quase uma unanimidade. Seu requinte vocal, sábio aproveitamento de um repertório no qual sempre encontra sucessos de grande comunicação popular (seja a regravação de uma marchinha de José Maria de Abreu/Francisco Matoso ("Pegando Fogo") ou um novo frevo de Moraes Moreira/Fausto Nilo ("Festa no Interior). Gal é uma cantora que consegue valorizar o repertório, dar a leitura apropriada à canção que interpreta e criar, assim, sucessos como "Um Dia de Domingo", da bem sucedida dupla Michael Sullivan/Paulo Massadas - em dueto com Tim Maia ou dar um toque revigorado a um rock simples de Roberto-Erasmo Carlos ("Musa de Qualquer Estação"), assim como confere extrema dignidade a novas composições de Djavan ("O Romance") ou Gonzaguinha ("Muito por demais"). Em sua condição de superstar, com mordomias especiais de produção, Gal pode ter todos os recursos para valorizar cada faixa, o que sempre conta no resultado final. Por exemplo, o arranjo de Luiz Avelar dá a "Último Blues", de Chico Buarque, um aproveitamento intimista - no equilíbrio dos múltiplos teclados - executados pelo próprio Luizinho ou Julio Cesar Teixeira, ao solo de sax alto de Lino Simão. Ao contrário de Gal Costa - cuja carreira tem sido constante e equilibrada - a carioca Angela RoRo é uma mulher-pulsação-emoção. Antes de tudo uma compositora de extrema sensibilidade, pianista também - lembra, não por acaso, a mais dramática e marcante mulher da MPB dos últimos 30 anos - Maysa Monjardim Mattarazo (1936-1977). Sua vida pessoal de altos e baixos se integra ao próprio folclore musical e retira, injustamente, o lado artístico. Que é grande, intenso e belo. Exemplo disto são suas dez novas músicas, incluídas em "Eu Desatino", um lp com produção, arranjos e regência de Antônio Adolfo, profissional que tem sido um dos poucos a trabalhar regularmente com Angela. Numa longa entrevista a Leonardo Monteiro de Barros, em release que acompanha o lp (ao menos no lançamento para a imprensa), Angela fala de sua vida, seus problemas com a bebida e amores, diz que hoje, em Itaipava, interior do Rio, busca um recolhimento espiritual e, especialmente, explica cada uma das músicas deste novo lp. Explicações interessantes mas dispensáveis, já que a força de Angela como letrista é grande. Tome-se, por exemplo, a faixa mais polêmica do álbum - proibida inclusive de divulgação pelo rádio e televisão: "Blue Janis", por sinal única parceria do disco (com Carlos Silva). É um grito dramático, amoroso, em favor da trágica cantora, falecida há 16 anos, vítima dos excessos de droga. Mais do que qualquer estímulo aos tóxicos, a canção de Angela é um brado de alerta ao dizer: "Dessa vez a gente passa a perna nessa tal de morte eterna... Essa coisa triste e feia, que só quer fazer xixi na sua veia!" Angela é a intérprette de suas músicas. Não a cantora. Sua voz é densa, pesada - não tem, obviamente, a frescura, o tom redondo de uma Gal Costa. Mas tem, em compensação, aquela sensação de realidade, de dramaticidade - de uma Dalva de Oliveira, Isaurinha Garcia ou da já citada Maysa. Mesmo buscando o humor, a sátira - como em "Isca de Piranha" fala de um problema sério - Aids - ou gente como "Laura Regina Hilária". Entre a auto-caricatura e a ironia, Angela canta na faixa que escolheu para dar título a este seu novo disco ("Eu Desatino!"). Você bem sabe o que eu segurei, penino! Pra te amar o quanto eu amei... Eu desatino só de me lembrar / Que eu dei bobeira, e o tempo a passar... Passar vexame como eu passei, atordoada eu me embriaguei... Agora estou de cara limpa, E sóbria a sua pinta é bem difícil de engolir!" LEGENDA FOTO 1 - Gal: suave, afinada... maravilhosa.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Música
27
09/03/1986

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