Mulher para dois na poesia de "Les Valseuses"
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 07 de outubro de 1978
Depois de anos de jejum cinematográfico em termos da (ainda) vigorosa produção francesa, começamos a ter um bom cardápio de lançamentos: a Gaumont, representada pela Distribuidora Arco Iris e a Artenova Filmes, começam a colocar no circuito da Fama, filmes que merecem, no mínimo, serem verificados, haja vista a qualidade técnica e inspiração que sempre marcou o cinema francês.
Os seis anos que separam a realização e a chegada ao Brasil de "Os Corações Loucos" (Cinema I, até amanhã) devem ser creditados não só à falta de um esquema mais dinâmico de comercialização da produção francesa, mas também a ação da Censura, em seu rigor extremo até o ano passado. Se não fosse a abertura, jamais um filme irreverente, debochado, cínico até como este "Les Valseuses" chegaria às nossas telas, a não ser sofrendo inúmeras cortes.
Aos mais puritanos um filme como "Os Corações Loucos" pode proporcionar um posicionamento xenófabo para defesa de nosso cinema: se Bertrand Blier, autor do romance, roteiro e diretor, pode desenvolver uma história de "Menage-a-trois" tão liberalmente, satirizando valores tradicionais e mostrando cenas de nu frontal, o que impede que os paulistas da boca-do-lixo não ataquem com produções grossas e apelativas como "A Noite das Taras" '
No caso de blier deve-se reconhecer que mesmo nas cenas mais excitantes - o relacionamento de Patrick Dewaere/Gerard Depardieu com Miou Miou ou, Jeanne Moreau, não chega a existir a grosseria que caracteriza tantas pornoproduções tupiniquins. Ao contrário, Blier consegue dar, especialmente na [seqüência] em que os dois jovens amam a personagem interpretada por Jeanne Moureau - uma mulher que deixou o presídio após cumprir sentença de 10 anos - um toque de lirismo, no que contribuiu, obviamente, a sempre extraordinária competência de Jeanne, uma das atrizes mais fortes do cinema contemporâneo. A narrativa de "Les Valseuses" se desenvolve de uma forma livre, descompromissada, sem uma preocupação de entrar em detalhes. Não importou a Blier esmiuçar as origens dos dois amigos, pequenos marginais que numa fuga da polícia viajam pelo interior da França, roubam vários veículos, envolvem-se com uma manicure (Miou Miou, uma sensual atriz, nesta semana podendo ser vista também em "O Sexo Oculto", de Daniel Duval, no Cine Rivoli) e Jeanne, ex-sentenciada. A narrativa flui naturalmente, com imagens captadas em muitos exteriores e embalada por uma das melhores trilhas sonoras do ano, composição de violonista Stephanie Grappeli, com execução do próprio e mais um quinteto jazzístico. Aliás, a trilha sonora de "Les Valseuses" é tão marcante e enternecedora, que em certos momentos consegue ampliar a própria dimensão deste filme de metragem um pouco acima do normal e um ritmo intenso, pela própria caminhada, meio "easy rider" de seus personagens centrais. A presença de Jeanne Moreau - mesmo que numa [seqüência] relativamente curta, e o próprio envolvimento de dois homens com uma mulher, pode sugerir a lembrança de um clássico de François Truffaut, "Uma Mulher Para Dois". Mas pode parecer heresia aos trufonianos mais fanáticos tal comparação: afinal, "Jules et Jim" tinha um sentido poético e de enaltecimento da amizade, que nem o próprio François conseguiu igualar em nenhum outro momento em sua movimentada (e admirável) carreira. Mas é inegável que ao menos um pouco do sentido de amizade, de união acima de todos os problemas, passa também neste - "Les Valseuses" - inclusive num final um tanto que simbólico.
Filmes como este "Os Corações Loucos" ficam na retina do espectador mais sensível, propondo [uma] revisão de próprios valores - no acomodamento de uma vida monótona de todo o dia. E, no anticonvencionalismo e (sublime) loucura dos personagens vistos nas telas, a transmissão de uma empatia. Um filme singelo e emotivo, que já pela música valeria ser visto. Ou então pelos momentos em que Jeanne Moureau ilumina a tela.
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