Na longa viagem, a guerra de todos (II)
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 08 de janeiro de 1980
Uma das [seqüências] mais chocantes de "Apocalypse" (Cine Plaza, 14,30, 17,30 e 20,30 horas) é aquela em que o oficial interpretado por Robert Duvall (aliás, numa magnífica caracterização), comandante de um corpo de "cavalaria" de helicópteros, entusiasma-se ao saber que entre os soldados está um ex-campeão de surf na Califórnia. E isto o faz arrasar uma aldeia vietnamita exclusivamente para limpar a praia e permitir a prática de surf - da qual é um dos mais fanáticos adeptos. A analogia deste oficial com o general Jack D. Ripper (Sterling Hayden) de "Red Alert" de Peter George - transformado por Stanley Kubrick, no clássico "Dr. Fantástico" (Dr. Strangelove: Or How I Learned To Stop Worryng and Love The Bomb), 1964, um clássico dentro do cinema antimilitarista, é inevitável. Como outro personagem daquele filme, o major "T.J. "King" Kong (Slim Pickens), o oficial surfista de "Apocalypse" usa chapéu de texano e, na melhor maneira de John Wayne (que em 1968 produziu e dirigiu o fascistóide "Os Boinas Verdes", pró-escalada da guerra do Vietnã) vê a guerra apenas como uma luta de mocinhos e bandidos. Apesar de caricutural, as imagens de Coppola, nestas [seqüências], dão uma idéia do absurdo da guerra e da estupidez do envolvimento de milhões de pessoas numa luta das mais violentas da história da humanidade.
Por outro lado, o caráter místico que assume o coronel Kurtz (Marlon Brando) em sua loucura divina, ao distanciar-se da "civilização" (sic) e se tornar uma espécie de "rei" de uma região fantasmagoricamente existente, apresenta alguns pontos de contato com o clima de "O Homem Que Queria Ser Rei", novela de Rudyard Kipling (1865 - 1936), que há 5 anos passados John Huston levou ao cinema, com Sean Connery e Michael Caine nos papéis centrais. As analogias entre "Apocalypse Now" e outros filmes/ livros são inúmeras - pois, pela própria seriedade com que Coppola se envolveu neste projeto, a intenção foi, claramente, realizar algo mais do que um simples filme de guerra. O Vietnã - como a guerra na Coréia, dos anos 50 - e a I e II guerras mundiais propiciam que se examine as relações de poder, violência, conquista dos mais variados aspectos. Pela própria contemporaneidade da guerra do Vietnã, evidentemente, a sua filmologia é ainda pequena - e não passam de 5 ou 6 filmes que ousaram, até agora, tocar o dedo na ferida, não apenas numa "mea culpa" dos Estados Unidos, mas, sim, numa visão global, neste mundo conflitado e sempre à beira de uma explosão - como agora, novamente, ate o recrudescimento da "guerra fria", após a invasão do Afeganistão pelas tropas da URSS, há duas semanas - numa nova crise internacional que mantém o mundo em suspense. Portanto, ao se ver as imagens de "Apocalypse", os personagens duros, estranhos, paranóicos - imensamente complexos e atordoados - não se está diante de uma ficção distante, mas de uma realidade presente. Recorrendo novamente ao perfeito estudo que John Tessitore publicou no "New York Times" (21/10/79) e que considero importante para se entender melhor "Apocalypse", em seu relacionamento entre as raízes literárias e a transposição cinematográfica. Ajusta-se a colocação que o crítico americano fez ao lembrar que foi em "The Golden Bough", de Sir James Frazer (1854 - 1941), que Coppola buscou elementos para dar uma colocação mais "científica" a decisão final do capitão Willard (Martin Sheen) em assassinar o coronel Kurtz (Marlon Brando). Antropólogo escocês, Frazer, em sua obra principal, "The Golden Bough" (O Ramo de Ouro), com o subtítulo de "Um Estudo em Mágica e Religião" (originalmente publicado em 12 volumes, entre 1890/1915) investiga as origens das crenças religiosas através do folclore universal, partindo da religião popular romana e analisando, com erudição notável todas as manifestações sobre os estudos comparativos de folclore e religião. Assim, foi da obra de Frazer - e não de "Heart of Darkness", de Joseph Conrad (1857 - 1924) - base do primeiro roteiro que John Milius escreveu, há 10 anos, para "Apocalypse" - que Coppola tomou emprestada a ambientação no Camboja e a forma da morte de Kurtz: punhaladas. Porém, mais sutilmente, mas não menos impressionante, é a noção de Kurtz de Coppola como "Rei do Fogo e da Água" - os símbolos de Frazer e que Coppola explora e constrói a partir do primeiro fotograma do filme. O fogo quase que não conta no livro de Conrad (publicado em 1902), enquanto que em "Apocalypse" opera em vários níveis: o poder do fogo, o napalm, os vilarejos incendiados. Importante é o caso da "doença" de Kurtz. Ele está fisicamente doente tanto no livro de Conrad como no filme de Coppola; porém apenas no último isto invoca a necessidade da morte (Willard nos conta que Kurtz, seus seguidores e a própria floresta queriam que ele morresse), ao passo que no livro de Conrad a população do vilarejo está enfurecida com a possibilidade de sua perda. Ironicamente, o Kurtz do "Apocalypse" é considerado "seriamente doente", não apenas por seus devotados seguidores, mas pela sociedade que o produziu. Como repetidamente comenta o generl e seu staff durante o almoço, no início do filme, Kurtz "está definitivamente louco". Eles também querem a morte de Kurtz, e assim fez Coppola, lindamente interligando duas aparentemente disparadas culturais: a chamada cultura civilizada e a bárbara, de uma maneira que não difere da de Conrad, chegando a um final antropológico em perfeita harmonia com a do próprio Frazer. Numa das muitas entrevistas de Coppola, ele admitiu conhecer "The Golgen Bough" desde seus tempos de estudante de cinema na Universidade da Califórnia. "De tempos e tempos eu lia capítulos diferentes. Quando chegou a hora de fazer o filme e percebi a semelhança, reli o livro com mais profundidade". Com grande profundidade, certamente, pois se analisarmos o filme pelos olhos de Frazer, somos capazes de afastar o seu fim enigmático. Logicamente, pode ser argumentado que Coppola falhou em transmitir cinematograficamente o todo-importante mito operativo. Os que estudaram a profunda obra de Frazer, sabem que a morte do homem-deus não deriva de malícia e, sim, como seus seguidores no filme, "de sua profunda veneração por ele e de sua ansiedade em preservá-lo, ou ainda o espírito divino que o anima, no mais perfeito estado de eficiência". Porém, Coppola não escolheu isto para compartilhá-lo com os espectadores, embora isto explique totalmente porque, quando Willard emerge da cena do raciocínio, ele é recebido não como podia se esperar, com fúria, e sim com adoração. Willard é "o mais perfeito estado de eficiência, para abrigar o divino espírito santo do rei doentio - ele é branco, ele é astucioso, ele é forte. Willard é aquele "de cuja vida a fertilidade dos homens, do gado e da vegetação supostamente depende (o festival pagão da fertilidade situa-se perfeitamente no mesmo plano da ascensão do jovem rei) e que são levados à morte, quer seja único combate ou de outra forma, para que o espírito divino possa ser transmitido ao seu sucessor completamente vigoroso, ainda não contaminado pela fraqueza e decadência da doença ou da velhice".
Assim, para se entender "Apocalypse", especificamente a sua longa [seqüência] final, é preciso ver que ela não se baseia em uma só obra, mas em duas: uma que é a sua trama de estrutura e a outra que é a sua estrutura mística. Onde "Heart of Darkness" acaba, "The Golden Bough" começa. É na realidade uma fórmula tipo livro didático, e isto talvez possa explicar porque Coppola escolheu não revelar a figura por inteiro. Não fazendo isso, entretanto, ele criou uma esfinge que não é nem homem nem besta, o que propõe uma charada para todos que se confrontam com ela.
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