Documentário sobre o homem e o aventureiro
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 19 de dezembro de 1989
Entre as centenas de opções visuais levadas ao VI FestRio, em sua edição Fortaleza (23 de novembro/02 de dezembro), nenhum filme era tão aguardado pelos cinéfilos como o documentário "The man, The Movies, The Maverick - John Huston", que desde sua premiére mundial, ocorrida a 12 de junho deste ano, no Festival de Cinema de Montreal, tem extasiado os hustonianos. Naquela cidade canadense, o jornalista João Luiz Albuquerque, assessor de imprensa do FestRio, assistiu ao documentário e decidiu: o mesmo teria que ter uma projeção no FestRio-89.
Assim, Joãozinho Albuquerque, um dos profissionais mais bem relacionados na imprensa cinematográfica internacional, quebrou lanças para conseguir da Turner Internacional, detentora dos direitos desta realização da Point Blank, originalmente destinada a Turner Network Television, a autorização para fazer ao menos uma exibição no Brasil.
Foi uma espera angustiosa! Somente três dias antes do término do Festival, chegou o filme tão aguardado. E para os cinéfilos, críticos e muitos realizadores que se deslocaram ao distante Cine Iguatemi II, na Capital cearense, a espera compensou. "John Huston - O Homem, O Cineasta, O Aventureiro" é uma homenagem a altura da vida e obra deste americano nascido na cidade de Nevada, em 5 de agosto de 1906, filho do ator Walter Huston (1884-1950) - que, sob sua direção, ganhou o oscar de melhor ator coadjuvante em 1948 ("O Tesouro da Sierra Madre") e cuja vida, de certa forma, confundiu-se (e identificou-se) com muitos dos personagens de seus filmes.
Pugilista (quando adolescente foi campeão peso-leve, ganhando 22 das 25 lutas que teve), jornalista ("fui o pior repórter do mundo"), fez hipismo profissional, estudou pintura em Paris (o que o auxiliaria a fazer um dos mais belos filmes de sua carreira: a vida de Toulouse Lautrec em "Moulin Rouge", 1952), foi vagabundo em Londres e, sempre um grande bebedor e vivedor. Seus porres fizeram histórias - mas não o impediram de deixar uma obra que dificilmente algum outro cineasta conseguirá ultrapassar. Apaixonou-se pela Irlanda e naturalizou-se irlandês - país cujo amor dividia com o México e, eventualmente a Austrália. Apesar de nascido nos Estados Unidos - e ali ter feito a sua carreira, Huston sempre foi um cidadão do mundo, como contou em "An Open Book" publicado em 1980 (no Brasil, "John Huston - Um Livro Aberto", 467 páginas, tradução de Milton Person, L&PM Editores, 1987).
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Frank Martin, o realizador do documentário sobre Huston, teve uma grande dificuldade na concepção deste filme: como sintetizar em 120 minutos, uma vida tão rica, trechos de 40 filmes marcantes de várias fases e depoimentos das centenas de pessoas com quem o cineasta conviveu? Apesar de experiências em documentários sobre bastidores de algumas grandes produções ("The Making of a "Mutiny The Bounty"; "Stampedes, Gunfiths & New Horizontes: "The Making of Silverado"; "The Making of Robocop" etc.), Martin optou por intercalar seqüências dos filmes mais marcantes da longa carreira - 46 anos - de Huston, com depoimentos de pessoas a ele mais chegadas. Robert Mitchum, 62 anos, foi escolhido para ser o narrador: visitando uma espécie de atelier-museu de Huston, o ator de olhos de mormaço introduz o espectador no mundo de Huston, sua vida intensa e, especialmente, seus filmes que trataram sempre de personagesn de intensa comunicabilidade humana mas, muitas vezes perdedores. Mitchum era tão amigo de Huston, que às vésperas de sua morte, quando sentiu que não teria condições de continuar seu trabalho em "Mr. North", dirigido por seu filho Tony, pediu que ele o substituísse.
Considerado um "diretor de homens", Huston tem um momento que pode ser encarado como feminino em sua vida: "Uma Aventura na África" (The African Queen, 1951), rodado na África com Katherine Hepburn e Humphey Bogart (1899-1957). Aliás, uma nova homenagem a Huston acaba de ser concluída por Clint Eastwood: em "Caçador branco, coração negro", rodado há poucos meses no Lago Kariba, Zimbabue, África Ocidental, baseado no romance do mesmo nome de Peter Viertel (que dividiu com James Ages o roteiro de "The African Queen") reconstitui as difíceis condições de filmagem daquele clássico que valeu a Bogart o Oscar de melhor ator. Boggie - como ele era conhecido -foi o melhor amigo de Huston, que o dirigiu em alguns de seus grandes momentos ("Relíquia Macabra", "Garras Amarelas", "O Tesouro da Sierra Madre", "O Diabo Riu Por Último"). Assim, nada mais natural que Laureen Baccal, que foi esposa de Bogart por 12 anos, fosse uma das escolhidas para prestar um longo depoimento (Huston a dirigiu, ao lado de Bogart, em "Paixões em Fúria/Key Largo", recentemente reprisado na Globo).
O ator inglês Michael Caine, dirigido por Huston em "O Homem Que Queria Ser Rei"; o dramaturgo Arthur Miller, roteirista de "Os Desajustados", 1961 (último filme estrelado por Marilyn Monroe) e Paul Newman (que por duas vezes trabalhou com Huston: "Roy Bean, o Homem da Lei", 1972; "O Emissário Mackintosh", 1973) também falam de diferentes aspectos da personalidade do diretor de "O Segredo das Jóias".
Somam-se palavras de técnicos, amigos e familiares. Dois de seus filhos - Anjélica e Danny (temporão, nasceu de seu terceiro casamento) também mostram o lado humano - mesmo que como pai nem sempre tenha estado presente. Danny relembra o Huston pintor - ele que também é artista plástico, embora, a exemplo do irmão Tony (que não aparece) venha fazendo cinema, como ator e diretor.
Oswald Morris, um dos mestres da fotograffia, fala de como o velho cineasta sabia buscar "o olhar da câmera na identificação de suas temáticas". Zoe Sallis, a terceira de suas esposas (a primeira foi Leslie Black, que tinha 15 anos quando casou, em 1935, e que foi sua mulher por dez anos) relembra, com ternura de seus últimos anos.
Entre a narração de Mitchum (que foi dirigido por Huston em "O Céu por Testemunha", 1957) e depoimentos de outras pessoas, menos conhecidas mas que tiveram grande ligação com o cineasta (Evelyn Keyes, Merleta Tree, Michael Fitzgerald, Tom Show) há o fascínio das seqüências de filmes que mostram o domínio que Huston teve em qualquer dos gêneros que freqüentou: o policial, o western ("O Passado Não Perdoa", "Roy Bean"), adaptações literárias - de "A Glória de Um Covarde" ( do romance de Stephen Crane, 1951) a Joyce ("The Dead"), passando por Teenesse Williams ("A Noite do Iguana", 1964), Rudyard Kipling ("O Homem Que Queria Ser Rei"), Malcom Lowry - ("À Sombra de Um Vulcão", 1984) e Herman Melville ("Moby Dick", 1956, recém-lançado pela Warner em vídeo): biografias ("Freud, Além da Alma") e até musicais ("Annie", 1982).
Enfim, um retrato intenso de Huston, numa produção-homenagem a um dos grandes nomes do cinema americano e que, se espera, tenha uma futura distribuição comercial no Brasil - seja em vídeo ou mesmo adquirida por alguma rede de televisão. Afinal, um documentário como este não é justo que fique restrito a exibições em festivais. João Luiz de Albuquerque, em seu fascínio por esta obra, está se empenhando para que "John Huston - The Man, The Movies, The Maverick" chegue para a visão de todos os hustonianos brasileiros.
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