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Aramis

Um filme-reflexão sobre os sentimentos humanos

"... só podemos ver aquilo que estamos preparados para ver, o que nossa mente espelha naquele momento específico". (Frederich Sommer) xxx Há apenas duas seqüências exteriores: a inicial, localizando a cidade (Dublin) e a época (1906) e, no final, quando os convidados deixam a festa e retornam as suas casas. Um velho e sólido prédio, iluminado, numa noite de véspera de Natal. Afora estas rápidas cenas, o cenário é um só: um apartamento de primeiro andar - amplo, confortável, grandes salas e uma decoração requintada. Neste ambiente, passa-se a ação de "Os Vivos e os Mortos" (Cine Ritz, 2ª semana, 5 sessões), dentro do qual há aquela vivência interior de sentimentos e emoção. Dentro da obra de um cineasta que, mesmo com incursões literárias, sempre se caracterizou por uma ação ampla, personagens másculos e dinâmicos, os homens e mulheres saídos do conto "The Dead" do irlandês James Joyce (1882-1941) surgem de uma forma diferenciada: ao longo de um jantar - a chegada, o aperitivo, reunidos ao redor da mesa e, finalmente, o café servido na biblioteca - cada um vai desenvolvendo seus medos e interiores - mas de uma forma implícita, sem discursos, dramas ou explosões. Sempre elegantemente, mesmo quando há citações quase bizarras, provocado pelo convidado alcoólatra, Freddy (Donald Donely). A crise mais emocional só acontece na última seqüência - já no apartamento do casal Gretta (Anjelica Huston) e Gabriel (Donald McCann), quando confessa sua paixão por um jovem que morreu aos 17 anos, há muito tempo. Um monólogo de intensa beleza e que provoca em Gabriel as reflexões que traduzem, na última fala, o significado do filme e mesmo o título - entremeando rapidíssimas imagens da solidão do inverno irlandês. Último filme realizado por John Huston (1906-1987), "Os Vivos e os Mortos" comportaria muitas definições: o testamento de um grande cineasta, o canto de cisne de um artista integral ou um último suspiro de quem, vigoroso ao longo de toda uma vida - grande amante, beberrão e realizador de várias obras primas - não aceitava a idéia da morte que se aproximava (a realização deste filme foi um esforço imenso, pois o velho Huston já se encontrava na fase terminal de sua vida). Talvez nenhum outro cineasta poderia penetrar tão bem em personagens aparentemente simples, reunidos numa ceia nas vésperas do Natal e que, entre abobrinhas típicas deste tipo de festas, deixam transparecer uma indagação em relação a vida (e a morte). Uma obra para finos paladares - e o trocadilho aqui se justifica - "The Dead" tem sido aproximado, em nosso entender, erroneamente, à "A Festa de Babette", do dinamarquês Gabriel Axel (Oscar de melhor filme estrangeiro - 1987) - pelo fato de ter sua ação concentrada numa refeição - mas nos parece bem mais próximo de "Fanny e Alexander" (1983, Oscar de melhor filme estrangeiro), pois tal como Ingmar Bergman, Huston buscou o preciosismo dos pequenos detalhes, de uma cenografia exata em cada fotograma - num trabalho maravilhoso do fotógrafo Fred Murphy. O clima da Dublin de início do século passa toda uma época que também já morreu: um jantar sofisticado, com danças (emocionante a trilha de Alex North, compositor que tantas vezes colaborou com Huston), declamações de poesias e pessoas que se encontram para conversar - pelo simples prazer de manter um relacionamento humano. Tudo é delicado, profundo, marcante nos 80 minutos de "The Dead", com um roteiro em que o filho do cineasta, Tony Huston (agora também diretor: realizava seu primeiro longa, com John, num dos papéis quando ele morreu), conseguiu reter o essencial da poesia, integridade e profundidade do conto de Joyce (publicado em 1912, na antologia "Os Dublinenses", edição em português da Civilização Brasileira, 1962). Desafio não apenas na leitura mas, principalmente, para transposição em imagens, Joyce teve sua obra-prima "Ulysses" (publicada em 1922), adaptada ao cinema por Joseph Strick, há 22 anos, numa co-produção EUA-Inglaterra, com Milo O'Shea e Maurice Reeves (preto e branco, 140 minutos, exibidos apenas 4 dias em Curitiba), mas que ficou como um filme praticamente inédito. Strick, 65 anos, fez outras difíceis tentativas de transposições literárias de Laurence ("Justine", completado por George Cukor), Henry Muller ("Trópico de Câncer", 1969), e Jean Genet ("O Balcão", 1963), retornando ao universo de Joyce em 1978 com "A Portrait of the Artist as Young Man" (John Gielgud, Bosco Hogan), nunca visto no Brasil. Huston, cuja carreira longa e marcante foi da mais conhecida literatura policial americana (Dashiel Hammett, 1941, "O Falcão Maltez / Relíquia Macabra"), a Kipling ("O Homem que Queria Ser Rei", 1975), ou ao também dificílimo Malcolm Lowry ("A Sombra do Vulcão", 1984), passando por uma dezena de outros grandes autores, escolheria, justamente, a síntese na obra de um escritor-mito na relação palavra/introspecção para realização de um filme que, dentro dos modismos de definições, poderia se chamar de minimalista. Uma ação mínima, poucos personagens, apenas três cenários - a vista exterior, o apartamento das tias Kate (Helena Carrol) e Julia (Catheleen Delany), e da sobrinha Mary Jane (Ingrid Craigie) e o retorno do casal Gretta/Gabriel a sua casa, fazem, entretanto, este filme adquirir tanta emoção e ternura. Ricardo Cota, uma das revelações da crítica brasileira, acentuou, com razão, que Huston conseguiu arrancar desempenhos precisos do elenco através de um trabalho minimalista e assim são inesquecíveis os tiques do alcoólatra Freddy, o olhar onipresente de Gabriel, a face melancólica de Gretta e, especialmente, a emocionada expressão de nostalgia de tia Kate (Helena Carrol) ao relembrar a beleza do canto de um antigo tenor inglês, além de tia Julia cantando "Vestido para Bodas". Como uma bebida finíssima - um Royal Salute ou o conhaque Napoleon, da melhor cepa, este "Os Vivos e os Mortos" é um filme para ser sorvido lentamente, pois como tão suave e deliciosamente as melhores bebidas são sentidas no paladar, as imagens legadas por Huston são colírios. Joyce deve ter recebido Huston com um abraço, no encontro celestial. Afinal, esta sua transposição a tela de "The Dead" não o fez remexer em sua tumba. Ao contrário, por certo, vivo estivesse, a assinaria e o aplaudiria. LEGENDA FOTO - Gretta (Anjelica Huston) e Gabriel (Donald McCann) em "Os Vivos e os Mortos" (Cine Ritz): um filme para finos paladares.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
04/06/1989

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