As notas e as imagens de Sérgio Ricardo
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 05 de novembro de 1974
"Nas nossas surdinas interiores, quando os ruídos da cidade não nos ferem os ouvidos, quantos de nós não nos embalamos com a lembrança de certas criações msicais privilegiadas de uns poucos grandes rapsodos nossos?
O que sei é que, nos meus silentes noturnos musicais, minha memória contabile se povoa de alguns deles e, seguramente, dos sons de Sérgio Ricardo, esse pan-brasileiro, que tem melorias e harmonias e cadências e timbres sons-nossos, expressões, dores e músicas sofridas e esperançosas, magoadas, amorosas e tristes, de nossa sensibilidade criativa".
(Antonio Houaiss, membro da Academia Brasileira de Letras, tradutor de "Ulisses" de James Joyce, escritor).
Dentro da história da música brasileira nas últimas duas décadas, nenhum compositor-cantor realizou músicas tao perfeitamente ajustada em fases diferentes de sua carreira, qanto Sérgio Ricardo, Paulista de Marília, 41 anos, ele mesmo diz que nas cadeiras de chocalhos e de papinhas ainda não falava mas já cantarolava. Nas cadeiras colegiais - em sua cidade natal - se fez poeta. A cadeira de pianista aprendeu com Tom o valor exato de um piano. Foi descoberto por Maysa - em sua fase de maior fossa e glória - quandoera pianista na boate Dominó, no Rio, em 1955. Mais só cinco anos depois fez o seu primeiro elepê como cantor, na Odeon, "Não Gosto Mais de Mim" (MOFB, 3.168), em que, numa das melhores produções de Aloysio de Oliveira, lançava 12 composições, ainda insuperáveis dentro do estilo mais romântico da Bossa Nova. Da ironia de "Pernas" à melancolia de "Máxima Culpa", passando por uma obra-prima chamada "Bouquet de Isabel" - estruturada numa verdadeira linguagem cinematográfica, antecipando já o cineasta Sérgio Ricardo que apareceria dois anos depois no curta-metragem "Menino de Calca Branca". - Neste elepê as suas composições era definidas por Aloysio de Oliveira como "letras e músicas com a dignidade inconformada, contra a máquina, a fúria, a frieza dos elementos anti-poéticos...". E poesia e sensibilidade estavam em músicas como "Não Gosto Mais de Mim, "Máxima Culpa", "Puladinho", "Ausência de Você" e "Amor Ruim", até hoje [tranqüilamente] entre entre as melhores do cancioneiro verde-amarelo.
No segundo elepê em 1962, ("Depois do Amor", Odeon MOFB 3239), Sérgio não era o compositor das doze faixas, como no seu primeiro disco explicava: "Componho o que sinto e o que tenho sentido ultimamente não mereceu ser cancão. Estou na fase do sinal amarelo. Nem verde nem vermelho. É preciso mudar o sinal para eu pasar p'ro lado das canções, ou vermelho, as canções passarem por mim como uma lotação. Em compensação, SR tomou emprestadas "doze canções que eu gostaria de ter feito"o que, em sua interpretação, mais os cuidados de arranjos providenciados pelo produtor do disco, Ismael Correa, fizeram deste álbm uma nova obra-prima. Revitalizando uma das mais antigas composições de Lamartine Babo-Francisco Mattoso, "Eu Sonhei que Tu Estavas tão Linda" e Duas Contas", de Garoto, musicando o "Poema dos Olhos da Amada", de Vinicius de Moraes, valorizando como merecia o compositor Johny Alf ("Ilusão Atoa"), mas incluindo também as músicas dos jovens da época "Depois do Amor", de Boscoli e Normando Marques; "Errinho Atoa", de Roberto Menescal; "Passarinho", de Chico Feitosa; "Quem Quiser Encontrar o Amor", de Lyra e Vandré, Sérgio Ricardo aproximou-se da interpretação desejada pelos autores, pois, lúcida e profeticamente, dizia:
- "Acredito, com sinceridade estarem estas canções representando uma importante contribuição pra a nossa música. E é isto que me dá toda a alegria de interpretá-las, com minha voz o meu pinao, "Vontando-se para o cinema, em 1963, tenho seu irmão Dib Lufti (hoje o melhor fotógrafo do Brasil), como câmera-man, escreveu, produziu, digitiu, interpretou e fez a triblha sonora para a longa metragem "Este Mundo é Meu". Assim, só em fins de 1964 voltaria a gravar um novo elepê já então para a Elenco, mas revelando uma posição nova: o elepê partir para uma posição inteiramente revolucionária, com músicas de fundo social.
"Hoje eu sonhei que se comia bife e até pastel
Que não se tinha que pagar mais aluguel
Morena voce bem merece todo o mundo que eu não dou
Carinho é tudo o que tenho para lhe dar".
Nas doze faixas deste elepê ("Um Senhor Talento , ME-7, Elenco, produção de Aloysio de Oliveira, arranjos e regência de Carlos Monteiro de Souza), encontrava-se o compositor preocupado em se "desgarrar de todos os tabus de forma e conteúdo estipulados pelo movimento da bossa nova e partir para a pesquisa da nossa música na fonte a essência do povo, seu cantar e seus problemas".
"Leva esse recado da favela pobre, pobre, pobre de maré desi
Tristeza mora na favela
Às vezes ela sai por aí".
Fazendo como Caimy e Villa-Lobos, "que não vão primeiro saber o que é sua terra, para depois, se amoldando a ela, comunicar a sua visão individual", Sérgio Ricardo rompia com a bossa nova, cantando:
"Felicidade então que era saudade sorri
Brinca um pouquinho enquanto a tristeza não vem
Canta, canta, nasceu uma rosa na favela".
Em 1965, Sérgio Ricardo viaja ao Exterior. Na Síria, faz um filme, "O Pássaro da Aldeia" (Taire in Caire), premiado no Festival do Líbano. Só em 1967 vlta a gravar, já então para a Philips ("A Grande Música de Sérgio Ricardo", novamente com arranjos de Monteiro de Souza, mais Gaya, Bruno Ferreira e dele próprio. O elepê trazia uma novidade: a capa feita por Ziraldo).
Neste álbum, Sérgio Ricardo incluía duas das músicas que havia composto no ano anterior para a peça "O Coronel de Macambira", de Joaquim Cardoso, e da teatralização de seu roteiro "Mutirão". Ainda preocupado em "se entender a se relacionar com a minha gente, comunicando e informando [seus] próprios problemas e sua própria arte, pois a gente tem que ser humilde se quer fazer música popular", Sérgio Ricardo incluía neste álbum músicas como "A Praça é do Povo", "Princesa Isabel", "Fantasia da Alegria" e "Brincadeira de Angola".
"Afinal, o País atravessa um período sério de transformação e o artista que se detiver no individualismo de afirmar sua capacidade apenas estética não estará contribuindo com essa transformação, pois não acompanhará sua queixa e suas necessidades. Fi ca, portanto, impossibilitado de qualquer relação com o próximo através de sua obra".
Sérgio Ricardo compôs a trilha sonora para o mais importante filme brasileiro da década de 60: "Deus e o Diabo na Terra do Sol', de Glauber Rocha (1964), para o qual voltaria a musicar "Terra em Transe", de George Jonas (1969), e finalmente escreve, dirige e faz a música para o seu segundo longa-metragem: "Juliana do Amor Perdido"(1970. Lançado o filme, Sérgio Ricardo volta-se mais uma vez à música: apresenta em junho de 1971, no Teatro Casa Grande, no Rio, o show "Conversação de Paz" e pela Equipe, grava o seu quinto elepê em 16 anos de carreira artística: "Arrebentação". Produção de Oswaldo Cadaxo, com arranjos de Theo Barros e regência do maestro Henrique Nuremberg, o reencontro com o mesmo e fértil compositor, que reafirma nas 12 faixas deste elepê um dos melhores discos de 1971 - o que dele afirma o escritor Antonio Houaiss:
"Artista de espantosa capacidade criadora - em qu00e não se pode esquecer o cineasta e o diretor, de um lado, e o intérprete e cantor, de outro, é, entretanto, na criação musical, em letra e música, que sua personalidade atinge o ponto mais alto, pois que nela tem o seu próprio eixo de coerência e de razão de ser"."
Nas doze músicas de "Arrebentação", uma síntese do trabalho do poeta inspirado e pesquisador preocupado em realizar uma obra marcante. O mesmo homem sensível de "O Nosso Olhar"("viu quanta coisa linda/ Você e eu sentimos/ Sob este luar/ Dentro do Silêncio/Que a noite fazia pelo nosso amor?") aqui está, nas longas e trabalhadas letras de qualquer uma das doze faixas deste disco. Unindo ao folclore mais puro e ao ritmo mais brasileiro, uma linguagem universal - que chega à ficção científica em "Analfaville", de Godard), da construção poetica perfeita em "Jogo de Dados" (Cuidado cantor/ Não vale errar o palavreado/ Cada dado é uma palavra/ Cada palavra é um dado/Cada truque traz a troca/E todo o troco vem truncado), ao homem ir&^nico de "Conversação da Paz".
"Hoje finalmente vai ter reunião
Conversação
conversação de paz
Vão chegando os ministros das relações
De um lado o civil e do outro o militar
Variadas seitas e religiões
É porque a ajda lá pro meu país
O caminho eu não sei o caminho não".
Após "Arrebentação" passaram-se quase dois anos para Sérgio Ricardo voltar a gravar, o que aconteceu no final de 1972, sendo lançado o disco (Continental, SLP 10.093), em janeiro do ano passado. Sempre evoluindo musicalmente, Sérgio trazia neste seu novo trabalho uma formação instrumental diferente de seus trabalhos anteriores: Peri, na viola, violão rabeca e bandolin; Fred, no piano e flauta doce, Cassio, no baixo elétrico e viola; Franklin, na flauta doce e flauta em dó transversa; e Paulinho do Camafeu, na percussão, enquanto ele próprio se alternava na viola, violão e piano, além de ser o autor de todas as músicas. Abrindo o lp, uma canção vigorosa como "Calabouço":
Olho aberto, ouvido atento
E a cabeça no lugar
Do canto da boca escorre
Metade do meu cantar"
Neste elepê, além de "Antonio das Mortes", com lera de Glauber Rocha, criada para o antológico "Deus e o Diabo na Terra do Sol", também a música-tema de "Juliana do Amor Perdido", apenas intrumentalmente. É uma experiência nova: "Canto Americano", com letra em espanhol.
Passaram-se mais dois anos para sair o novo trabalho musical de Sérgio Ricardo - e este como um complemente de seu filme "A Noite do Espantalho" (cine Scala, a partir do dia 7), com as músicas de forte influência folclórica-regional, interpretada por ele, mais Alceu Valença, Ana Lúcia de Castro e Geraldinho Azevedo.
Sete elepês em 19 anos de carreira. Uma prova de contenção e seriedade de um trabalho honesto e criativo, responsável a cada proposta e que merece um análise de profundidade - pois poucos artistas em nosso País têm experimentado com tanta consciência (e plena realização) tão diversos gêneros.
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