O dia anterior (II)
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 14 de janeiro de 1984
É inevitável aos cinéfilos acima de 30 anos a lembrança de "Dr. Fantástico" ao assistir "Jogos de Guerra" (Cine Condor, 5 sessões). Mesmo sem o humor atômico que Stanley Kubrick, há 20 anos passados, dosou "Dr. Strangelove: Or how I learned stop worrying and love the bomb", o filme de John Badham, que agora chega aos cinemas brasileiros, traz também identidades tmáticas. No romance "Alerta Vermelho" (Red Alert), de Peter George roteirizado pelo excelente Terry Southern, a ação se desenvolvia em vários planos, com Peter Seller interpretando afora o personagem-título, também o capitão Lionel Mandrake e o presidente Muffley. O dr. Strangelove - no qual muitos viram uma caricatura do futurologo Herman Kahn - contrapunha-se em suas teorias de um ataque nuclear a ação que um general direitista, Jack D. Ripper (Sterlling Hayden) desencadeava: isolando sua base, determinava a uma fortaleza voadora, do Stralegic Air Command a voar para Moscou e iniciar a guerra nuclear. O ritmo de comédia - melhor dizendo, farsa - não tirava a dramaticidade de "Dr. Fantástico", numa temática alias tão séria que no mesmo ano de 1964, sem piadas, o mesmo risco de uma guerra pela loucura de algumas pessoas, era tratado em "Limite de Segurança" (Fail Safe, de Sidney Lumet).
Ao menos um dos personagens de "War Games", o general Beringer (Barry Corbin), em seu nervosismo belicista, lembra os generais "Buck" Turgidson (George C. Scot) e Ripper (Hayden), além do coronel "Bat" Guano (Keenan Wynn) do filme de Kubrick. A sátira não é gratuíta, embora entre o corte profundo e visceral de Kubrick, em 1964, fosse muito mais contundente do que aquilo que John Badham coloca neste seu filme em 1983. Na filmografia de obras que retrataram no cinema o fim do mundo através de explosão atômica ou guerra nuclear, o primeiro grande impacto foi provocado por outro Stanley - Kramer - há 25 anos, ao levar a tela o romance de Nevil Shute, "On The Beach", no Brasil chamado de "A hora final". Embora, três anos após as explosões de Hiroshima e Nagasaki, surgissem os primeiros filmes sobre as possibilidades de uma guerra total ("A destruição do mundo / Krakati", 1948, de Otakar Vavra), esta preocupação teria seu maior impacto com a obra de Kramer, focando a ação sobre um grupo de sobreviventes da III Guerra Mundial, vivendo na Austrália, enquanto se aproxima a nuvem de radiação final.
Agora, quando a corrida armamentista atinge níveis tão preocupantes quanto foi o auge da Guerra Fria (início dos anos 50) e da crise dos mísseis, em Cuba (1962), é natural que o cinema, como reflexo do comportamento e das inquietações de sua época, se volte a este tema - seja de uma forma apocalíptica, mostrando o fato consumado - "Pesadelo Nuclear" (título dado a "The Day After", estréia nacional dia 19, quarta-feira, em Curitiba no cine Vitória), seja através de uma ficção como "Jogos de Guerra". Em 1965, Peter Watkins já havia realizado um filme com o mesmo título e também abordando a guerra nuclear ("The War Game"), mas esta obra nunca chegou aos cinemas brasileiros.
Já o filme de John Badham, desde maio do ano passado - quando teve sua primeira exibição, hors-concours no festival de Cannes, na França, é, há oito meses, obra das mais comentadas. Astutamente, o roteiro de Lawrence Lasker / Walter F. Parkes somou ao fato em si - os riscos da guerra nuclear por acidente - a mais nova mania desenvolvida entre a juventude, no início nos EUA, hoje já em dezenas de países: os vídeo-games. Se em "Dr. Fantástico ou Como Aprendi a Não me Preocupar e Amar e Bomba", era a loucura de um general anticomunista, preocupado com a colocação de "germes marxistas" na água que o povo americano bebia, que provocava o início da guerra, neste "War Games" a razão é bem mais ingênua. David (Matthew Broderick), um adolescente apaixonado pela informática, vivendo na solidão de seu quarto repleto de computadores, vídeo-games e outras parafernálias eletrônicas, usa o seu talento nesta área para compensar as falhas nas matérias que não gosta. Assim, penetra no sistema de computação da escola secundária e altera não só suas notas, mas também de sua colega, a bela adolescente Jennifer (Ally Sheed). Ao ler uma mala direta na qual uma indústria de jogos-cartuchos anuncia próximos lançamentos, decide antecipar-se e tentar fazer o seu computador "descobrir" as novidades. Por acaso, acaba penetrando num sistema que deveria ser o mais seguro e secreto - o do computador "Joshua", criado por um cientista notável, Falken (John Wood), para substituir as indecisões humanas no caso de ter que se dar início a um conflito nuclear - o que é, aliás, colocado na abertura do filme, antes da apresentação dos créditos. O ritmo da suspense e tensão é mantido ao longo dos 90 minutos de projeção: deflagado o processo de fazer "Joshua" iniciar o jogo de guerra termonuclear total, torna-se impossível impedi-lo de parar, a não ser pelo próprio cientista que o programou, falecido há 10 anos. O roteiro de Lasker e Parker vai fornecendo, pouco a pouco, os elementos ao espectador - e a ação não se fragmenta em episódios - mas consegue um ritmo notável, característico, aliás, nos filmes de Badham. Se o cinema deve refletir as preocupações de nossa época - mas com pitadas de entretenimento - "War Games" se ajusta como uma luva. Afinal, embora não tão desesperados como americanos e europeus, os brasileiros começam a se conscientizar e se assustar do que será uma guerra nuclear. Pois, com toda a violência e batalha no dia a dia de nossas vidas, quem não deseja chegar ao ano 2000.
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