Proust no filme com o requinte clássico
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 20 de janeiro de 1986
"Um Amor de Swann" (Cine Ritz, 5 sessões) se inclui naquela categoria de filmes que têm seu público ampliado a cada semana, não por publicidade ou (apenas) referências críticas mas, sobretudo, pelo chamado "elogio de boca a boca". Longe, entretanto, da popularidade de um"filme para todas as platéias" como "Retratos da Vida" ("Les uns et les autres", de Claude Lelouch) - o maior êxito de público (em termos de permanência em exibição: seis meses no Cinema I) em Curitiba - a transposição à tela de um pequeno episódio da imensa obra de Marcel Proust (Paris, 10/7/1871- 18/11/1922) tem um encanto magnífico, um momento de empatia para com os quais o espectador praticamente se desacostumou."Em Busca do Tempo Perdido", mastodôntica obra desenvolvida em 7 volumes publicados entre 1913 (("À Sombra das Raparigas em Flor") a 1927 ("O Tempo Redescoberto") está naquela cateogria de clássicos do mundo que todos falam e poucos leram. A linguagem extremamente descritiva de Proust, capaz de gastar 7 páginas para "colocar" o personagem em ação, em determinado ambiente, sempre foi um elemento de desafio sonífero a leitores contemporâneos, especialmente de uma geração acostumada à rapidez e objetividade dos meios audio-visuais ou, no máximo, uma literatura objetiva, quase jornalística em muitos momentos.
A lentidão do texto de Proust - em que pesem seus imensos (e jamais negados) méritos literários (e mesmo social, como grande cronista de toda uma época) fizeram com que sua obra permanecesse por mais de 60 anos inédita na tela. E a decisão da ex-atriz e produtora Nicole Stephane em transpor ao cinema ao menos um episódio do tempo proustiano esbarrou, como aqui já publicamos, em muitas dificuldades. Cineastas da sensibilidade e competência de René Clement, Luchino Visconti, Joseph Losey e Peter Brook, mesmo fascinados pelos personagens, não conseguiram levar adiante seus projetos. Portanto, quando um cineasta alemão, de 46 anos, vindo de um cinema político ("A Honra Perdida de Uma Mulher") e consagrado pela transposição de um notório romance alemão ("O Tambor", de Günther Grass) à tela (que valeu inclusive o Oscar de melhor filme estrangeiro) se dispos usando um roteiro que Jean-Claude Carrière havia iniciado em colaboração com Peter Brook (sete longa-metragens, mas um trabalho mais regular em teatro e óperas), a dar forma visual aos personagens de Proust, muitos chegaram a duvidar de bons resultados.
Marie-Françoise Lecler ("Le Pont", julho/83) lembrou com lucidez que Schlondorff conseguiu levar ao cinema (com uma fotografia perfeita de Sven Nykvist, o predileto de Bergman) todo um universo de beleza exterior e conflitos humanos de seus personagens. A história se passa na Paris requintada de 100 anos atrás, mas a empatia de uma paixão doída de um aristocrata requintado - Charles Swann (Jeremy Irons) por uma bela e terrível mulher, misto de anjo e demônio, Odette De Crecy (Ornela Mutti) conserva uma perene atualidade.
Como o Barão de Charlus, Alain Delon (que foi o ator lembrado para este personagem, desde o projeto de Visconti) tem, possivelmente, a melhor interpretação de sua carreira.
Admitindo-se, como fez Roland Barthes, que a obra de Proust é "uma química misteriosa que muitos entre nós conservam pela vida", como suportar, portanto, que os personagens sejam encarnados? Cada leitor de "A Procura do Tempo Perdido" leva consigo suas imagens mais fortes, que todas as representações. Esta questão - válida aos que conhecem o público que jamais leu (ou lerá) Proust - teve da parte de Scholondorff uma preocupação grande. Assim, Irons, Ornela Mutti e Alain Delon criam interpretações que se pode, sem exagero, classificar como definitivas: o amor torturado de Swann por Odette, as relações com Charlus - protetor desta (porque homossexual) dão a cada imagem, a cada seqüência de "Um Amor de Swann" uma beleza especial. A paixão deSwann, o amor de Odette - a sua infidelidade torturante - e a quem ele ama loucamente - são questões colocadas com emoção e sensibilidade neste filme. O próprio Schlondorff, numa entrevista, tentou justificar o comportamento destes personagens: "Ela amou Swann, mas ele não percebeu, absorvido que estava dentro de seu ciúme destruidor".
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Schlondorff - que inclui em sua filmografia também adaptações de outros escritores considerados "difíceis" - como MargueritteYourcenar ("O Tiro de Misericórdia/ Le Coup de Grace"), o suíço Robert Musil ("A confusão do aluno Toerless") e Heirich von Kleist ("Michel Kolhas") obteve um requinte especial no tratamento dado aos personagens. Por exemplo, a bela Ornela Mutti - no papel da pouco virtuosa Odette, uma espécie de "call-girl" da Paris do final do século XIX, é transformada em imagens de uma virgem de Boticelli, com cabelos ruivos e beleza pura. Proust descrevia Odette de Crecy como "parecida com Séfora, a filha de Jetro, que se pode ver num afresco da Capela Sistina".
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