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Aramis

O cinema na busca do tempo de Proust

Os meses de janeiro e fevereiro significam férias para os apreciadores de filmes de qualidade. Dentro do natural raciocínio de que neste período o público mais exigente viaja ou deixa de freqüentar os cinemas - e as crianças passam a ter mais necessidade de opções para se divertir, os lançamentos se restringem a censura livre e produções destinadas ao simples entretenimento. Reprises de filmes de ação já testados anteriormente e as naturais pornoproduções de sexo explícito completam a programação. Acontecem, entretanto, saudáveis exceções. Nesta semana, por exemplo, há duas estréias das mais estimulantes, justificando a ida aos cinemas que os exibem. De princípio, o há muito aguardado "Um Amor de Swann" (Cine Ritz), que o alemão Volker Schlondorff realizou há três anos com base num dos volumes da obra "Em Busca do Tempo Perdido" de Marcel Proust. Um desafio que muitos cineastas de prestígio - Joseph Losey, Peter Brook e Luchino Visconti, entre outros, não conseguiram vencer, apesar de sonharem com o projeto. A segunda - e importante - estréia é "A Floresta das Esmeraldas", de John Boorman (Cine Vitória), rodada há dois anos no Interior do Rio de Janeiro e, especialmente, na Amazônia. No elenco, embora em papel secundário, um ator curitibano que está construindo sólida carreira: Ariel Coelho. Tendo começado sua carreira há 12 anos, sob direção de seu amigo Antonio Carlos Kraide, Ariel - um tipo magro, olhar profundo, aparência meio vampiresca - tem se dado bem no Rio de Janeiro. Já fez telenovelas, atuou em uma dezena de peças de sucesso e meia-dúzia de filmes. Ainda agora, concluiu sua participação em "As Sete Vampiras", de Ivan Cardoso - onde novamente interpreta um vampiro, personagem que, pelo visto, lhe dá muita identidade (no auditório Salvador de Ferrante, em 1980, viveu o personagem-título de "Drácula", na comédia que Eddy Antonio Franciose criou sobre o morcego da noite). xxx Transpor para a tela a Paris elegante e sofisticada de cem anos passados, descrita na grandiosa obra de Marcel Proust (1871-1922) "Em Busca do Tempo Perdido" se constituía, sem dúvida, um desafio mesmo a cineastas da grandeza de Luchino Visconti, Josey e Brook que, em ocasiões diferentes, chegaram a trabalhar em adaptações dos sete volumes que compõem esta obra clássica. Recusada pelos editores, só em 1913, financiada pelo próprio Proust, saiu o primeiro dos romances ("No Caminho de Swann", escrita em 1911), ao qual se seguiram "À Sombra das Raparigas em Flor" (publicado em 1919, recebeu o prêmio Goungort); "O Caminho de Guermantes" (1921) e "Sodoma e Gomorra" (1922). Só após a sua morte, a obra foi completada com a publicação de "A Prisioneira" (1923), "A Fugitiva" (1925) e "O Tempo Redescoberto" (1927). Nesta imensa obra, Proust fez uma introspecção e observação do mundo em que viveu, descrevendo a decadência da aristocracia e suas façanhas sentimentais. A realidade exterior, a sociedade e seus hábitos dissolvem-se na recriação do narrador, feita através da exploração de sua intuição. xxx Os direitos de adaptação ao cinema da obra de Proust pertenciam desde 1962 a Nicole Stephane, que foi atriz ("Le Silence de La Mer", "Les Enfants Terribles") e depois de um acidente de automóvel tornou-se produtora ("Morrer em Madrid" e "La Vie en Chateau"). O primeiro cineasta que Nicole pensou para levar à tela o mundo de Proust foi René Clement, mas que nem chegou a desenvolver o projeto. Em 1970, quando Visconti, com toda sua sensibilidade, filmava "Morte em Veneza" (do romance de Thomas Mann, outro autor difícil), chegou a trabalhar numa adaptação, ao lado de seu colaborador Suso Cecchi D'Amico. O projeto seria ambicioso, com personagens de vários romances mas o orçamento estourou e apesar do elenco escolhido, a idéia foi abandonada. Em 1972, seria Joseph Losey que, com seu colaborador habitual, o dramaturgo Harold Pinter (com quem fez "O Criado", "Estranho Acidente" e "O Mensageiro") se lançou ao trabalho, mas pensando mais em usar apenas o último romance. Infelizmente, a produção não teve condições de ser deslanchada. Nicole não desistiu e chamou Peter Brook, mais conhecido como diretor de teatro, embora autor de 7 filmes marcantes (um deles, por sinal, "Encontros com Homens Notáveis", de 1979, acaba de estrear em São Paulo). Brook trouxe novos colaboradores, entre eles o roteirista Jean-Claude Carrière (habitual roteirista de Luiz Buñuel). Decidiram pinçar o episódio "Um Amor de Swann" da obra, para se transformar em filme: a dramática história de um jovem rico, Charles Swann, por uma mulher leviana, Odette De Crecy. Como pano de fundo, um mundo aristocrático captado nos seus ritos, a velha e a nova burguesia, o pequeno mundo de personagens - na grande crônica social, da qual Proust foi, como sempre lembra o jornalista Nelson Faria (um de seus maiores leitores no Paraná), um precursor. Mas Brook também não filmaria Proust. Preferiu outro projeto - uma encenação de "Carmen" da ópera de Bizet - também transformada em filme (inédito no Brasil). Surge então Volker Schlondorff, cineasta alemão que havia sido premiado com o Oscar por "O Tambor" (do romance de Günther Grass) e que, animado pelo roteiro inicial de Carrière, aceitou o desafio. Juntos trabalharam um ano, antes das filmagens começarem. Para o elenco, nos papéis centrais, foram escolhidos Jeremy Irons, 36 anos, que vinha do êxito de "A Mulher do Tenente Francês" (de Karel Riez, do romance de John Fowler) no personagem de Charles Swann; para viver Odette, a escolha foi de Ornela Mutti, jovem atriz italiana, que havia se destacado em "Crônica do Amor Louco" - o cruel filme de Marco Ferreri. Alain Delon, que há 15 anos já havia sido cogitado para a primeira adaptação, dirigida por Visconti, foi o personagem certo para viver o Barão de Charlus. Mais um elenco de suporte com muitos nomes competentes, o esmerado fotógrafo Sven Nykvist e uma trilha sonora marcante de Hans-Werner Henze, vindo da área erudita e que já havia trabalhado em outros filmes de Schlondorff ("A Desordem de Toerless", "A Honra Perdida de Uma Mulher", etc.). Resultado: "Um Amor de Swann" é um daqueles filmes em que talentos múltiplos se somam. Personagens extraídos de uma obra clássica, uma perfeita recriação de época e um filme que, nesta semana, se constitui em programa de visão obrigatória.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
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Tablóide
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11/01/1986

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