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Aramis

A obra-prima de Glauber que está proibida há 13 anos

Brasília Para alguns - embora poucos - espectadores privilegiados, pode-se dizer que o momento mais especial deste bem organizado festival de cinema do Distrito Federal durou exatamente 12 minutos e foi a raríssima oportunidade de conhecer, numa sessão reservada o único filme, oficialmente, atualmente proibido no Brasil: "Glauber Rocha". O realizador de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" e que, nos anos mais duros da repressão chegou a fazer verdadeiros happenings políticos neste Festival, esteve presente, ao menos por alguns minutos, na tela quando um grupo de jornalistas, cineastas ou simples interessados em nosso cinema pôde ver uma obra que, passados sete anos de sua morte, mostra todo o seu vigor e que se encontra proibida pela justiça: o documentário que ele rodou na noite de 6 de setembro de 1977, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, durante o velório do pintor Emiliano Augusto Di Cavalcanti (1897-1976) e que, acoplado a outras imagens e numa linguagem delirantemente genial (no qual teve a assistência do cineasta baiano Roberto Pires, há anos radicado em Brasília) se transformou num curta-cult, sobre o qual muito se fala não foram feitas exibições regulares pois a filha e herdeira do pintor, Elisabeth Cavalcanti, irritadíssima por aquilo que chamou de "bagunça" que Glauber fez durante o velório - e achando que as imagens "denegriam" a memória de seu pai - conseguiu, a sua interdição e apreensão dos negativos, até hoje em poder da justiça do Rio de Janeiro. Apesar da importância do curta-metragem, como linguagem inovadora e testemunho apaixonado de Glauber à Di Cavalcanti, o próprio cineasta, mesmo irritado pela proibição, no furacão de criatividade que sempre o marcou, envolvido com a realização de "A Idade da Terra" e, posteriormente outras dificuldades e andanças internacionais, acabou deixando a questão do filme em compasso de espera. Resultado: muito se escreveu a respeito do filme, de sua linguagem inovadora, alternando cenas de velório e do enterro no cemitério São João Batista (Rio de Janeiro), com imagens de telas de Di Cavalcanti - e a narração absolutamente pessoal de Glauber, parecendo irradiar um jogo-de-futebol, lembrando seus encontros com o pintor (no Brasil e Exterior) e falando de sua importância artística. Entretanto pouquíssimos espectadores - mesmo a comunidade e críticos - viram o filme, já que os negativos foram apreendidos. Restou uma única cópia, presenteada pelo próprio Glauber a um amigo de Brasília, que o tem guardado a sete chaves. Só o conhecimento do filme - e a verificação de que longe de ter qualquer fotograma que denigra a imagem de Di Cavalcanti, mas, sim exalta o artista, o homem e o amigo - fará com que se forme uma corrente de opinião pública para estimular um movimento em favor de sua liberação. Obra-prima Como tudo que Glauber Rocha realizou, este documentário é inovador, elétrico, avançadíssimo - e assistindo-o agora, sente-se que o tempo somente o tornou mais importante. Curiosamente, neste XXII Festival do Cinema Brasileiro de Brasília, foi apresentado um curta chamado "Pós Modernidade", no qual a jovem cineasta paulista Mirela Martinelli, a propósito de focar a produção e o consumo industrial da Paulicéia Desvairada destes anos 80, realizou um filme acadêmico, pseudamente didático e irritante. Se comparado a eletricidade a luz energética que emana das imagens do filme de Glauber é de se pensar que como é lamentável que esta pequena obra-prima do cinema do autor esteja proibida devido a imbecilidade da egoísta filha de Di Cavalcanti, incapaz de entender a importância da homenagem visual que o mais importante cineasta brasileiro dedicou com tanta garra, à memória de seu pai. Assistindo-se a "Di Cavalcanti", na ótica de Glauber Rocha, impossível deixar de recordar as ligações do diretor de "Terra em Transe" com esta cidade - na qual chegou a residir após ter voltado do seu exílio europeu, e sacudido as estruturas intelectuais-políticas-jornalísticas no final dos anos 70, ao ser contratado por seu amigo Oliveira Bastos, na época diretor do "Correio Brasiliense" - hoje editor do mais novo jornal do Planalto, o independente "BSB-Brasil", que vem circulando desde maio último - e que já está entre os dois mais vendidos (embora, sua circulação se restrinja à Brasília, sem distribuição regular em outros Estados). Tanto Glauber como outros cineastas, jornalistas e intelectuais que os órgãos de segurança consideravam "perigosos" a ditadura eram vetados sistematicamente na relação de nomes que o presidente da Fundação Cultural do Distrito Federal, Rui Pereira da Silva (1973-1979) submetia aos donos do poder. Isto não impedia, entretanto, que, por sua conta, Glauber tenha vindo a alguns festivais. Entrou para a história do Festival de Brasília a intervenção que Glauber fez em 1978, durante um almoço no hotel Nacional, quando não se intimidou pela fama do antropólogo-cineasta francês Jean Rouch (criador ao lado de Edgar Morin, do chamado cinema-verité) e o acusou de colonizador cultural entre outras coisas. Mesmo com todo respeito que Rouch e Kast tinham junto aos meios cinematográficos a intervenção de Glauber, em sua verborragia baiana-universal-barroca, fez com que um debate inicial ganhasse foros de escândalo cultural, com manifestações que elevaram o grau do Festival. Durante a Ditadura, a grande preocupação dos órgãos de segurança era desaquecer esta manifestação cultural, motivo de declínio e quase desaparecimento. Só em 1985, quando o poeta e jornalista Reynaldo Jardim presidia a Fundação Cultural do Distrito Federal, o coordenador Marco Antônio Guimarães pôde reiniciar o processo de real abertura do Festival - que atingiu neste ano o seu grande ponto, pois mesmo, com todas as limitações financeiras e ter sido organizado em apenas 40 dias, foi um evento dos mais importantes culturalmente. Um colírio para os olhos - como bem disse o produtor José Pereira: conhecer o filme-mito de Glauber, ainda proibido oficialmente mas mais do que nunca necessário de ser liberado, foi, de certa forma uma homenagem que se fez ao criador que mais incendiou culturalmente o nosso cinema - e cujos resultados se fazem sentir até hoje, mesmo entre realizadores vanguardistas que, em vida, o negavam como Julinho Bressane (seu inimigo por anos), que aqui trouxe "Os Sermões", que não deixa de ser agora, um filme na renovadora foram do cinema que Glauber, há 30 anos passados, ajudou a fazer merecer o termo "Novo" - que permanece até agora.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
09/11/1989

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