O Brasil político e real voltou ao Fest-Brasília
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 31 de outubro de 1989
Brasília
Não só o mais antigo dos festivais de cinema brasileiro, - criado há 24 anos, como uma "Semana do Cinema Brasileiro", por iniciativa de Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977), na época professor do curso de cinema da Universidade de Brasília, se transformaria em mais do um evento competitivo uma verdadeira praça de resistência democrática, especialmente a partir da terceira edição quando, a vigência do AI-5, endureceu a censura e a perseguição aos intelectuais. Pelos debates paralelos, exibição de filmes que mesmo tendo mensagens camufladas pregavam a resistência e a denúncia de regimes militares, o Festival de Brasília sofreu interrupções por três anos (1972-74), voltando apenas a acontecer em 1975.
Se, nos anos 60/70 sofria a censura política, rigorosa, nos últimos anos o esvaziamento de Brasília vinha acontecendo pela mesma síndrome que atinge todos os outros eventos cinematográficos: falta de recursos, problemas administrativos e mesmo dificuldades administrativas - como a crise havida no ano passado, quando o maestro Marlos Nobre, presidente da Fundação Cultural do Distrito Federal, assumindo o evento e tentando transferi-lo do Cine Brasília para um conjunto de cinemas num distante shopping center enfrentou pesadas críticas - numa oposição dura e constante que a imprensa lhe move desde que assumiu o cargo, substituindo ao poeta e jornalista Reynaldo Jardim. Este ano, mais uma vez, até há um mês, o Festival de Brasília estava ameaçado de não se realizar: além da falta de recursos, um problema mais grave - a ausência praticamente de produções inéditas, já que nos últimos 2 anos não chegaram a serem finalizados mais do que 20 filmes em condições de disputarem festivais - número insignificante para um cinematografio que ultrapassava as 100 produções anuais até 1981/82.
Felizmente, houve uma reação e através da soma de esforços do Ministério da Cultura-Governo do Distrito Federal-Embrafilme, o festival está acontecendo. Para tanto, foi indispensável o retorno do incansável, atencioso e sempre competente Marco Antônio Guimarães, no últimos dois anos ligado a Pró-Memória, em Minas Gerais - a quem se devem algumas das melhores edições do Festival. Assumindo a coordenação geral e técnica. Agilizando o regulamento, Marco Antônio conseguiu, com seu excelente relacionamento e apoio decisivo da Embrafilme, obter filmes importantes para, a convite (e não pelo processo de seleção) disputarem 25 troféus candangos e premiações num total de NCz$ 48 mil (NCz$ 10 mil para os curtas metragens), o que num momento de crise que o cinema brasileiro (3 os seus bravos realizadores) enfrenta(m), sempre é significativo.
Coincidência ou não do momento político que atravessamos - há pouco mais de uma semana das eleições para a presidência - o Festival de Brasília volta a ter uma participação de filmes políticos, corajosos e atuais - resgatando assim a sua tradição de apresentar obras polêmicas.
O longa de abertura na noite de hoje, "Uma Avenida Chamada Brasil", de Octávio Bezerra, é um contundente documentário sobre a violência, a miséria a "guerra civil: onde a vida não vale nada", como diz seu subtítulo, rodado entre 21 de abril a 7 de setembro de 1988 ("uma coincidência, as filmagens terem estas datas históricas como cerco") ao longo dos 50 km da principal ligação rodoviária do Rio de Janeiro com outros estados e também a periferia - a margem das quais existem 25 imensas favelas. Mostrando numa única sessão, como hor concours, no RioCine Festival (agosto/89), "Uma Avenida Chamada Brasil" teve lançamento em três cinemas cariocas na segunda quinzena de outubro, com excelente repercussão da crítica. Desde já, está entre os favoritos para sair com premiações importantes.
Páreo duro - ao menos no que diz respeito a melhor atriz (Irene Ravache). É "Que bom te ver viva", lancinante documentário realizado pela estreante Lúcia Murat, jornalista, ex-presa política, que reuniu depoimentos de oito ex-prisioneiras políticas, presas e torturadas nos anos da ditadura - entremeados de uma ficção/reflexão feita por Irene Ravache, alter-ego da própria Lúcia Murat. A primeira exibição pública de "Que bom te ver viva", em sessão hor concours, no XVII Festival de Cinema de Gramado, causou a maior emoção - antecedendo a excelente recepção que teve posteriormente em sua pré-estréia no Rio de Janeiro, onde já está em exibição no circuito também há duas semanas. Seu lançamento em Curitiba deve acontecer ainda este ano, pois, filha de uma família que viveu por muitos anos em Palmas, Lúcia Murat já teria inclusive trazido o seu filme para o encerramento do I Festival de Cinema de Curitiba (setembro), se tivesse havido maior interesse da comissão organizadora daquele evento em encerrá-lo com uma obra polêmica.
Embora não esteja na competição - mas programado para a mostra informativa (dia 5, 17:00 horas), "Corpo em Delito", de Nuno César de Abreu, sobre um médico corrupto que colaborou com a ditadura, fornecendo laudos falsos atestando como causas naturais as mortes de prisioneiros políticos torturados pela repressão - também é um filme de grande impacto político. Premiado no Festival de Cinema de Natal, inclusive para o ator Lima Duarte, não entrou na parte competitiva justamente por ter obtido as principais distinções naquela outra mostra. Já o sensível "Jardim de Alah", que valeu ao carioca David Neves prêmios especiais do júri em Gramado e Natal - concorre novamente. "Exu", o documentário antropológico de Raquel Gerber, prêmio especial do júri do Festival de Curitiba (e exibido por 2 semanas no cine Groff), inicialmente programado para a mostra competitiva acabou sendo substituído por "Lili, Estrela do Crime", de Lui Farias - que representou o Brasil no último FestRio e encerrou o festival de Gramado - "Ori" será apresentado apenas na mostra informativa (dia3). Embora já lançado em várias capitais - e a disposição em vídeo - esta comédia unindo violência e marginalidade, mas numa visão artificial, totalmente oposta a seriedade de Bezerra em "Uma Avenida Chamada Brasil", tem poucas chances de premiações - apesar dos cuidados da produção e nomes globais no elenco (Bette Faria, Reginaldo Farias, Mário Gomes).
Os dois filmes realmente inéditos em festivais - e para os quais há a maior expectativa - são obras de cineastas que, ao longo de suas carreiras tem se voltado ao experimentalismo e a literatura: "Os Sermões" de Júlio Bressane (sábado, 4) e "Minas Texas" (Old Texas of my Dreams), de Carlos Augusto Prates. Cineastas intensamente pessoais em suas obras - cultuadas em círculos especiais, premiados em festivais - Bressane e Carlos Prates, aqui fazendo as primeiras apresentações de seus filmes - cujo lançamento comercial não acontecerá este ano - deverão ganhar espaço privilegiado, já que a imprensa nacional já vem, há tempos, divulgando bastante os outros filmes em competição.
Também entre os curtas, 35mm, convidados para a competição, há trabalhos inéditos e que prometem bastante, confirmando aliás uma tendência sentida nos últimos festivais: a qualidade e talento dos novos realizadores, que em seus curtas, tem, na maioria das vezes, merecido maiores elogios do que os realizadores de longas-metragens.
LEGENDA FOTO - Octávio Bezerra (à direita), nas filmagens de "Uma Avenida Chamada Brasil", documentário que abre hoje o XXII Festival de Cinema de Brasília.
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