Quem matou o Papa João Paulo I?
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 25 de novembro de 1984
Desde que David Yallop anunciou o seu livro "In God's Name" (Project X) o mundo alvoroçou-se: uma investigação em torno do assassinato do Para João Paulo era uma bomba de muitas toneladas de megatons. O livro foi editado quase simultaneamente em dezenas de países e está há meses entre os mais vendidos. No Brasil, em tradução de Pinheiro de Lemos, num volume de 370 páginas, foi lançado pela Editora Record.
Morris West, escritor australiano, autor de dois best-sellers cuja ação se passa no Vaticano - "O Advogado do Diabo" e "As Sandálias do Pescador", escreveu um esclarecedor artigo sobre o livro - e seus personagens. Um texto que O ESTADO DO PARANÁ divulga nesta edição.
Na página 247 de seu livro "Em Nome de Deus", David Yallop faz uma declaração incisiva e irrestrita da sua alegação: "Albino Luciani, Papa João Paulo I, foi morto entre 21:30 de 28 de setembro de 1978 e 4:30 do dia 29."
E em seguida revela os nomes de seis suspeitos...
Cody, Marcinkus, Villot, Calvi, Gelli, Sindona. Pelo menos um desses homens tomou uma decisão que foi executada durante o final da noite de 28 de setembro ou na madrugada do dia 29. Essa decisão importava em aplicar a Solução Italiana. O Papa devia morrer.
Os seis homens apontados como possíveis instigadores do pretenso crime, ou conspiradores de sua execução, formam um estranho conjunto.
Cody, já morto, era o Cardeal Arcebispo de Chicago.
Marcinkus é um arcebispo cujo nome tem sido manchete constante na imprensa mundial, ligado a escândalos financeiros no Vaticano. Continua bem vivo e residindo na Cidade do Vaticano.
Villot, francês, está morto. Era o Secretário de Estado e Cardeal Camerlengo - ou seja, o cardeal encarregado dos assuntos da Igreja no intervalo entre a morte de João Paulo I e a escolha de seu sucessor. Calvi, um banqueiro italiano, está morto. Foi encontrado enforcado sob uma ponte em Londres com os bolsos cheios de pedras.
Gelli, figura altamente sinistra e que tem suas atividades longamente discutidas no livro, está vivo e foragido.
Sindona, outrora chamado "o banqueiro de Deus" e "o salvador da lira", está vivo e na cadeia, nos Estados Unidos.
Dessa maneira, há três homens ainda vivos acusados por um conceituado escritor com instigadores ou conspiradores no complô visando à morte de um pontífice. Dos três, dois conhecidos criminosos. O Arcebispo Marcinkus, apesar de seus erros e deslizes em assuntos financeiros, continua a ocupar um alto cargo na corte papal. É originariamente cidadão norte-americano, e poderá, se tiver permissão dos seus superiores, mover uma ação por crime de calúnia ou impedir por meios judiciais a publicação e distribuição do livro... Até o momento ele não tomou tal providência.
A pergunta que todos os leitores do livro farão e: "O autor faz uma denúncia de crime de morte contra alguma pessoa ou pessoas citadas?"
Ele certamente reuniu e tornou inteligível uma vasta quantidade de excelentes provas das atividades financeiras corruptas de Sindona, Gelli e Marcinkus, e das várias instituições financeiras do Vaticano. Igualmente, juntou um grande número de declarações autênticas feitas por pessoas importantes no Vaticano. Quanto ao resto, teve de recorrer, como deverá fazer qualquer relatório romano em alguma fase do seu processo, a "fontes seguras" - gente da mais variada graduação, dentro e fora da Cidade do Vaticano, sempre disposta a prestar informações e jamais a dar seus nomes. Essa proporção do seu material é na maior parte provável ou possivelmente verdadeira.
Friso esse ponto porque desejo dar crédito total a David Yallop pelo trabalho sólido e esmerado feito na apresentação da sua tese. Ele nunca permitiu que o interesse diminuísse, embora usando às vezes as técnicas da ficção para dar mais colorido aos fatos: diálogos reconstruídos, documentação incompleta, ligações telefônicas que de forma alguma seriam reportadas por quem as tivesse feito ou recebido. Algumas vezes, também, suas interpretações de personalidades são ultra-simplificadas. Seus vilões não têm o menor traço de bondade. Por outro lado, seu retrato do Pontífice, João Paulo I, foi para mim delicado demais para ser crível.
Contudo, não exagera ao tratar da influência corruptora do sigilo na hierarquia dos celibatários que controlam a mais antiga corte na Europa. E hábil e preciso na sua descrição da maneira de proceder da corrupção: o mexerico escondido, a intriga de alto nível e a ganância e fome de poder como pecados praticados em lugar de sexo.
Vivi durante sete anos em Roma. Conheci pessoalmente muitas das pessoas citadas na narrativa do livro. Algumas delas foram recebidas em minha casa, outras encontrei em reuniões diplomáticas ou em casa de amigos. Tenho conhecimento pessoal de algumas das trapaças financeiras descritas pelo sr. Yallop. Sei como são fabricados os boatos no Vaticano, com as declarações de porta-vozes do clero podem ser encobertas por um véu de casuísmo. Admito, com pesar, a verdade de que os altos prelados algumas vezes contam mentiras deslavadas.
Quando João Paulo I morreu, voei para Roma fim de cobrir suas exéquias para uma revista americana. Eu estava a par, e o mesmo acontecia com todos os meus colegas em Roma, de que circulavam rumores sobre uma ação criminosa naquela morte. As notícias quanto ao encontro do corpo eram conflitantes. Debatia-se diariamente o fato de não ter sido feita uma autópsia e de o corpo ter sido imediatamente embalsamado. A propósito dessas ocorrências, o relato do sr. Yallop é detalhado e, tanto quanto me lembre, preciso.
O Cardeal Villot, o Camerlengo, certamente contribuiu para a boataria pela maneira inábil como se conduziu na eventualidade. Primeiro tentou enfeitar a ocasião com uma historinha tola sobre o encontro do morto com um exemplar da "Imitação de Cristo" nas mão. Espera-se que papas e bispo morram "com um odor de santidade" e um livro próprio para referência futura.
Villot ficou de posse de alguns objetos pessoais e papéis do Papa, que não mais foram vistos. Como Camerlengo, ele tinha o direito, se não mesmo a obrigação de fazê-lo, e sendo o encarregado único de todos os assuntos durante a vacância da Sé, é difícil dizer quem poderia compeli-lo a prestar conta de seus atos.
A proibição da autópsia foi outro erro. Dado o perene clima romano de medo, suspeita e cochichos por trás das cortinas, é possível que Villot tenha pelo menos achado que fazer a autópsia seria uma medida sensata. Além disso, o Vaticano preza muito a sua soberania. A mera sugestão de que ele pudesse submeter-se a alguma lei externa ou - isso nem pensar! - à opinião pública, teria sido totalmente inaceitável. Uma vez mais a questão enfrentava uma barreira de evasivas, meias-verdades e mentiras diplomáticas. Villot revelou-se uma pessoa sem qualquer dose de humor, um Francês difícil de lidar; mas isso não o enquadra no papel de assassino.
Sindona e Gelli? Esses são grandes, detestáveis e perigosos marginais, que têm com certeza privado com diversos criminosos. Mas conquanto haja motivos em abundância para incriminá-los, não existe um revólver ainda fumegante como prova de que foram eles os assassinos de João Paulo I.
O Cardeal Cody era um tipo nem cativante, nem acreditável nem ornamental para a Igreja. Áspero, cruel e ganancioso, ele fazia política eclesiástica como um chefe político dos velhos tempos de Chicago, sem dar importância alguma a Roma. Mas crime de morte nas dependências papais? Não vejo necessidade nem prova de que o tenha cometido.
Marcinkus? Ele e eu sempre fomos antagonistas. Eu discordava da sua teologia e tinha uma inveja enorme do seu handicap no golfe. Tivemos mais de uma discussão na mesa do jantar sobre assuntos espirituais e temporais. Os debates sempre se encerraram com uma categórica declaração: "Sou homem do Papa!" E a isso eu nunca consegui dar uma resposta educada.
Menciono essa ligação porque me pedem agora que, como crítico, opine sobre um documento que acusa Marcinkus de coisas piores do que teologia reacionária. Em todas as provas levantadas com respeito às suas manobras financeiras, o Arcebispo Marcinkus evidenciou-se um homem tolo e imprudente. Certamente consorciou-se com criminosos - Sindoma foi um deles - e participou de suas negociações. Há na Itália e em outros lugares os que gostariam de levá-lo à barra dos tribunais para provar que é corrupto e criminoso. Até agora não conseguiram esse intento e, à falta de um veredicto final, assiste a Marcinkus o direito de que se presuma ser ele inocente de todas as acusações não provadas.
Yallop cita Marcinkus como um possível conspirador no crime. Suas alegações procedem? Ou pelo menos levantam a suspeita de que existe culpa? Acho que não. Se Yallop tivesse de comparecer a um tribunal como réu num processo de calúnia ou como testemunha de acusação no julgamento de um crime de morte, o advogado da parte contrária o reduziria a pedacinhos. O que não quer dizer que a prova do autor e mesmo suas presunções não sejam muito lógicas. Porém não o bastante - estão bem longe disto - para significar autoria do assassinato.
Contudo, uma acusação foi feita - acusação e uma sociedade Fechada, curial onde os preceitos do antigo Evangelho são freqüentemente esquecidos nos lances sinuosos do jogo de poder. Numa tal sociedade, é fácil demais encobrir com o manto da religião o comportamento mais sinuoso ou transviado. Mas não aceitem minha palavra como definitiva. Leiam o livro. Pesem as provas. Façam o seu próprio julgamento. Numa sociedade aberta se procede assim.
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