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Aramis

Quinze homens e uma sentença

"Minha intenção ao produzir "A Conferência de Wansee" foi criar um documento para o futuro. Não quero que o passado seja esquecido". (Manfred Korytowski, produtor) São quinze homens ao redor de uma grande mesa. Riem bastante. Tomam conhaque da melhor procedência. Fartam-se com finas iguarias. E decidem o destino de onze milhões de judeus. Em exatos 87 minutos. O real é mais terrível do que a ficção: absolutamente verdadeiro, o documentodrama "A Conferência de Wansee" (Cine Groff, 5 sessões) é daqueles momentos em que o cinema serve a história e se insere na máxima que o povo judeu se impôs após o genocídio nazista: não esqueceremos! O dramaturgo Reginald Rose escreveu em 1955 um teledrama no qual onze jurados deveriam decidir pela pena de morte para um jovem acusado de ter assassinado o seu pai. Após ouvidas as testemunhas, a defesa e promotoria, reúnem-se numa sala abafada para chegar a uma conclusão que deveria ser unânime. Feita a primeira votação, o jurado número 8 levanta a dúvida: não concorda que o réu seja culpado. Planta uma dúvida em alguns outros jurados - mesmo naqueles que desejavam "acabar rapidamente com isso". De discussão em discussão, há uma análise do crime, das circunstâncias e ao final o veredicto é pela inocência do jovem. Cada jurado deixa o tribunal e retoma o seu quotidiano. Filmado por Sidney Lumet, então com 33 anos, vindo da televisão e estreando no cinema, "Onze homens e uma sentença" (Twelve angry men, 1957) se tornaria um clássico do cinema jurídico, na discussão de culpa ou inocência - e no direito do homem julgar o seu semelhante. A lembrança deste filme vem ao se assistir "A Conferência de Wansee". Aqui são quinze homens - entre generais da SS, departamento de defesa, Gestapo, ministério do leste e mesmo alguns civis - ministro das relações exteriores, ministro da justiça. Todos convocados pelo todo poderoso Reinhard Heydrich, chefe de polícia de segurança e do serviço secreto do III Reich (a temível SS), comandante da ocupação nazista na Checoslováquia e considerado o segundo homem na hierarquia nazista. A reunião aconteceu na manhã do dia 20 de janeiro de 1942, numa mansão aristocrática em Wansee, tranqüilo subúrbio de Berlim. Apenas um assunto em pauta: a decisão da chamada Solução Final para o problema judeu. Com a entrada dos Estados Unidos na guerra (após o ataque pelos japoneses a Pearl Harbor) Hitler havia decidido eliminar todos os judeus da Europa. 500 mil já haviam fugido dos territórios ocupados pelos nazistas mas restavam onze mihões - cinco dos quais na Rússia. A perseguição e o assassinato dos judeus já estava em andamento mas a Conferência de Wansee deveria oficializar - junto aos mais altos dirigentes do nazismo - as razões legais para o genocídio. Discutiu-se, então, a questão das leis antijudaicas, da posse dos bens dos judeus, e, especialmente, dos casamentos mistos - dos mestiços (filhos de judeus e arianos). Diálogos contudentes. Ao longo da reunião, apenas duas vozes - o ministro do exterior e um oficial superior, tentam argumentar racionalmente. No final, a decisão foi sacramentada e Heydrich, antes de retornar a Praga, telefona a Hitler comunicando que tudo havia saído, por unanimidade, conforme o desejado. Alguns meses depois, Heydrich foi assassinado por um grupo de partisants checos e, em represália, Hitler determinou a destruição total da cidade de Lidice: todos os habitantes foram mortos e as casas derrubadas por bombas - numa das maiores mostras de violência e desumanidade do nazismo. A única cópia de "Die Wanseekonferenz" trazida ao Brasil teve sua primeira exibição numa sessão paralela do IV FestRio (novembro/87), ocasião em que aqui comentamos o impacto deste documentodrama: a reconstituição de um episódio real com atores (e uma única atriz, como a secretária da reunião). Robert Alexander, executivo do grupo Oddebrecht, recebeu a cópia das mãos de seu tio, Manfred Korytowski, que havia produzido o filme, e, auxiliado pelo jornalista José Haroldo Pereira, da revista Manchete, mandou legendar a cópia em vídeo, em sistema Betamax. Uma distribuidora de filmes independentes, a Latina, se interessou pelo filme - considerando sua importância histórica, e se dispôs a procurar um circuito especial no Brasil - apesar de não dispor de material promocional (fotos coloridas, cartazes, etc). Assim, o lançamento de "A Conferência de Wansee" em Curitiba aconteceu da forma mais obscura possível. Um filme que necessitaria de uma sessão prévia e especial com líderes da comunidade israelita (além de professores de história), capazes de motivar um público especial, foi tão mal lançado que até ontem menos de 140 pessoas o haviam assistido - num dos maiores fracassos de público do circuito da Fundação. Que é a culpada desta frustração, pois se soubesse trabalhar com o público-alvo, poderia atingir uma faixa ampla e interessada. Desfa forma, pouquíssimos espectadores estão conhecendo este filme que reconstitui, com a maior honestidade, um dos episódios mais terríveis do nazismo: a forma com que foi oficializado o extermínio do povo judeu. Como os clássicos "Punhos de Campeão" (The set up, 1949, Robert Wise) ou "Matar ou Morrer" (High Noon, 1952, Fred Zinneman), "A Conferência de Wansee" tem a mesma duração dos fatos que narra: são 87 minutos nos quais o diretor Heinz Schirk, 57 anos, alemão de Dantzig, vindo da televisão, reconstitui, em detalhes, a reunião que Heydrich, considerado o preferido de Hitler para seu sucessor, convocou. Em janeiro de 1942, campos de concentração já existiam e execuções já eram feitas na Alemanha, mas o extermínio total dos judeus na Europa foi oficializada a partir desta conferência. Três participantes da reunião ainda viviam na Alemanha na época das filmagens (1986). Um deles, o general da SS, Gerhard Klopfer, morreu em janeiro de 1987, aos 81 anos. Korytowski tentou entrevistá-los, inclusive a secretária, mas todos se recusaram a falar. As cenas exteriores foram tomadas no próprio local onde teve lugar a conferência e na qual funciona hoje um jardim de infância. Os interiores foram filmados em estúdio. Das roupas aos relógios de pulso, tudo foi reconstituído exatamente como aconteceu. Os atores são muito conhecidos na Alemanha - mas, naturalmente, desconhecidos no Brasil. Impressionante a semelhança física com os personagens reais - como no caso do ator que interpreta Eichmann, então um jovem e ambicioso oficial, encarregado já dos assuntos judeus. Parcialmente financiado pela televisão alemã, "Die Wanseekonferenz" foi exibido, na República Federal da Alemanha, primeiramente nos cinemas. Já foi visto em salas de projeções de 27 países. Somente depois que começou a conquistar prêmios no exterior é que a televisão alemã acorajou-se a programá-lo. Manfred Korytowski, 52 anos, nascido na antiga Prússia, produtor de muitos dramas, comerciais e documentários para a televisão, inclusive a conhecida série "Pamucki" (o programa infantil de maior sucesso na história da TV alemã), viveu no Brasil - para onde sua família veio em 1937 (e aqui ele permaneceu até os 16 anos). Em 1953 foi para Israel, onde passou dois anos no exército. Em 1958 voltou para a Alemanha. Em 1962, logo depois do julgamento de Eichmann, em Israel, Manfred pretendia realizar um filme sobre o caso, entrevistando testemunhas do processo. Quando pesquisava no Yad Vashen, os arquivos do Holocausto, em Jerusalém, leu alguns documentos sobre a Conferência de Wansee. Foi o suficiente para iniciar seis anos de pesquisa sobre o assunto. Korytowski encontrou nos arquivos anotações originais da secretária da reunião (interpretada no filme pela atriz Anita Mally), que junto com as cartas de Himler e Georing, o depoimento de Eichmann, entrevistas com os participantes do julgamento de 62 e documentos obtidos de Kempner, um dos promotores americanos do Julgamento de Nuremberg (que, no cinema, motivou em 1961 o extraordinário filme de Stanley Kramer), serviram de base para o roteiro. Assim, estruturalmente, "A Conferência de Wansee" é um filme que se aproxima ao máximo da realidade - razão pela qual a expressão documentodrama se ajusta perfeitamente. Em termos cinematográficos, o diretor Schirk conseguiu dar uma linguagem dinâmica e criativa - de certa forma usando a técnica de seqüências contínuas, com pouquíssimos cortes (em 1948, Alfred Hitchcock rodou "Festim Diabólico/The Rope", sem um único corte), o que faz com que a câmera deslize sobre os personagens, enquadrando-os em momentos tensos e dramáticos. Extremamente dialogado - e com centenas de informações que, para o público sem maior preparo em torno da história contemporânea, especialmente da II Guerra Mundial, torna difícil, em certos momentos, o perfeito entendimento. "A Conferência de Wansee" é, sem dúvida, um dos mais importantes (e necessários) filmes já realizados sobre o nazismo. Lamentável que sua exibição tenha passado tão despercebida por falta de maior atenção da Fundação Cultural. Domingo, na primeira sessão da noite, havia apenas 7 espectadores, entre eles, emocionados, o casal Jaime-Fani Lerner e sua filha. Pena também que o Centro Israelita do Paraná não se interesse em promover filmes como estes - que poderiam possibilitar esclarecedores debates. Por exemplo, no II FestRio, foi trazido o documentário "Shoah!", de nove horas, realizado pelo jornalista francês-judeu Claude Lanzman - considerado uma obra definitiva sobre o genocídio do povo judeu - e que apesar de ter um cópia legendada, até hoje só foi exibido em sessões especiais no CineClube Estação Botafogo, no Rio de Janeiro. Preocupados - com razão - sempre que há qualquer referência ao anti-semitismo, os dirigentes do Centro Israelita devem se preocupar também em divulgar para as novas gerações documentos com estes. Que ficam esquecidos e ignorados em nosso estado. LEGENDA FOTO - "A Conferência de Wansee": um documentodrama sobre a reunião dos nazistas que decidiu pelo extermínio do povo judeu na Europa. Um filme impressionante em exibição no Cine Groff.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
28/09/1988

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