Taiguara, a volta com o lp feito em Curitiba
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 26 de outubro de 1983
Durante várias semanas um dos mais famosos compositores e intérpretes brasileiros esteve em Curitiba, meio anonimamente, fugindo de qualquer contato com a imprensa - Taiguara (Chalar da Silva), 38 anos - completados no último dia 9 de outubro. A exemplo de Geraldo Vandré, Taiguara sofreu muito com a ação da censura no período mais duro da repressão, a tal ponto que deixou o Brasil - inicialmente indo a Inglaterra, depois para a África. Amargurado, havia prometido que não voltaria mais a gravar e cantar no Brasil. Há 2 anos, entretanto, começou a fazer um disco na Continental, que teve duas primeiras faixas antecipadas num compacto simples. A produção se tornou complicada e a idéia do disco estava para ser abandonada, quando Taiguara veio a Curitiba, para reencontrar-se com o admirável e já lendário maestro Lindolfo Gaya, hoje arranjador do Sir - Laboratório de Som & Imagem. Aqui, durante dezenas de horas de gravações, Taiguara colocou voz e alguns instrumentos nas trilhas anteriormente registradas, em São Paulo. Foi um trabalho emocionante, sofrido - que teve em Carlos de Freitas, sem favor nenhum, hoje um dos mais competentes engenheiros de gravação do Paós (além de excelente baterista, integrante do Samjazz). Um dos responsáveis por sua conclusão. Artista em busca de perfeição, exigente, emotivo e, sobretudo, político, Taiguara transformou cada sessão de gravação, num verdadeiro acontecimento. Houve dias em que mais falava sobre política do que cantava. Outras vezes, emocionado, chorava em algumas gravações - como testemunhou o jornalista Luiz Augusto Xavier, que descreveu isto em sua coluna (<< Tribuna do Paraná >>, 16/10/83): << Foram momentos maravilhosos. Aquele silêncio, a introdução e a voz de Taiguara descendo firme, preenchendo todos os espaços do Sir, nessa nossa Curitiba. Aqui, ali, escondido do outro lado, lágrimas contidas, outras incontroláveis, emoções correndo a mim e um sentimento todo posto pra fora >>.
A prolongada ausência de Taiguara dos discos - seu último elepê, << Imyra, taypa, Ipy, Taiguara >>, foi feito em 1976, na Odeon - e nos shows (praticamente desde 1973), Não fez com que ficasse esquecido. desde 1965, quando gravou as músicas do filme << Crônica da Cidade Amada>, de Carlos Hugo Christensen, Taiguara fez uma série de elepês marcantes.
Músicas românticas, mas que nunca deixaram de ser participativas. Um curso de direito interrompido na Mackenzie, a vivência no salutar movimento musical de São Paulo do início dos anos 60 e a melhor fase dos festivais, defendendo músicas como << Modinha> (Sérgio Bittencourt), << Helena, Helena, Helena >> (Alberto Land), << Negróide >> (de sua autoria), no III FIC (para só citar algumas referências básicas. Enfim, um artista da maior importância, que ao lado de músicas consagradas como << Universo de Seu Corpo> e << Que as crianças cantem livres>, tem variedades jóias, pouco divulgadas - e que em Curitiba, tem em Cesar Ribeiro da Fonseca, um dos maiores conhecedores de sua obra, um bom intérprete.
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A imprensa nacional está dando, com razão, um merecido destaque ao retorno de Taiguara ao disco. Há algumas semanas, no << Pasquim >>, saiu uma irada entrevista - mas bastante esclarecedora da posições políticas e andanças de Taiguara nestes últimos anos.
(<< Canções de Amor e Liberdade>, seu disco lançamento da Continental, capa de Jaime Leão) - traz 12 músicas da maior força e que exigem audição atenta. Seu pai, o bandoneonista Ubirajara (e que viveu alguns anos em Montevidéu, ali casando com a cantora Olga, e lá nasceu Taiguara), tem uma participação especial e emotiva neste disco, que abre com Anita >>, construída a partir de uma epígarfe famosa de Che Guevara: << Hay que endureceu/perosin perder/ La ternura/ Jamas >>). Em seguida, vem << Índia >>, a clássica guarânia de J. A. Flores, que como bem lembrou Nilson Monteiro (<< Folha de Londrina >>, 6/10/73), numa tradução que respeita a letra original de Ortiz Guerrero, para quem a imagem da índia era a verdadeira face da América Latina. Naturalmente, o mais conhecido harpista paraguaio (embora há mais de 20 anos vivendo em São Paulo), Luís Bordon não poderia ser dispensado de participar. << Voz do Leste >> - que ao lado de << Che Tajira >> só foi liberada em 12 de maio último, por unanimidade, pelo Conselho Superar de Censura - é uma canção de ritmo rural, mas das mais profundas. Para interpretá-la. Taiguara convocou a dupla Cacique e Pajé (<< Sou Voz Operária no Tatuapé/Canto enquanto enfrente o batente co`a a mão/-Trabalho no ritmo desse Chamamé/ Meu pouco salário faz minha ilusão/Vivo como posso e me deixa o patrão/ e enquanto respira dessa chaminés/Meu povo se vira e não vê solução >>), << Mais Valia >> é um rasqueado, com uma inteligente utilização da dupla interpretação desta expressão. Mas é, sem favor. << Estrela Vermelha >> (Do crepúsculo do Sul), um tema originalmente composto pelo avô de taiguara - o velho Graciliano Corrêa da Silva (que também era músico e cantor), a que mais tem entusiasmado os que a ouviram. Luís Augusto Xavier, que a considera << uma das mais lindas de todo o cancioneiro nacional >>, conta que fez o estúdio todo chorar e impedir - por algumas vezes - que o autor conseguisse gravá-lo até o final, por situá-lo em plena arrancada para o exílio, através de seus versos fortes: << Chão do meu lar/litoral que te vejo azular/ Cruz de luz que te sinto pesar/ Brilho... queimar que me dói/ cor do sangue que nós/ não conseguimos derrotar >>. Cada canção tem sua estória e seu significado, fazendo deste elepê gravado em partes em Curitiba, por certo, um dos lançamentos mais importantes do ano. << O Amor de Justiçava >>, tem, por exemplo, um arranjo marcante do maestro Gaya - sem o qual, talvez o disco não tivesse disso completado - é um bolero que coloca a opção do artista por um amor novo, calcado na justiça e na luta comum. O sentido latinista do álbum é dos mais fortes: << América del Índio >>, um poema ameríndio, com letra em espanhol; << Avançada >>, música e letra de Oscar Safuán; << Che tajira >> - também com letra em espanhol e << Marilia das ilhas >>, na qual a guerra das Malvinas é vencida pela Argentina (<< E o gringo que invadiu teu lar/ A um Índio vai ter que enfrentar >>).
Enfim, um disco pensado, amado, sofrido - onde nada foi gratuito. Por isto mesmo, merecedor de um tratamento especial - e ocupando hoje, espaço nobre em nossa coluna diária, ao invés do registro habitualmente feito para os lançamentos fonográficos em nossa página dominical.
FOTO LEGENDA - Canções de Amor e Liberdade Taiguara
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