Um sonho de perfeição que morreu com Tucker
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 30 de agosto de 1989
"O que é bom para a GM é bom para os Estados Unidos..."
(ditado popular capitalista)
Numa classificação genérica, seria um filme sobre a indústria automobilística - e não automobilismo, especificamente, a biografia de um construtor (fracassado) de um modelo que não emplacou.
Seria. Não é. "Tucker - Um Homem e seu Sonho" (Astor, hoje, 5 sessões, último dia em exibição) é um filme que transcende. É sobre o idealismo, um sonho, a família, o poder das supercorporações capitalistas e até mesmo a publicidade. Tudo isto realizado com poesia, um certo humor, muita ternura e a mesma garra que Francis Ford Coppola, 50 anos, demonstrava há 17 anos passados com "O Poderoso Chefão" (The Godfather), no qual, partindo de uma ficção (mas quase real) também traçava um painel sobre a vida, os valores e as instituições americanas - aprofundadas ainda mais na seqüência, dois anos depois (numa das raras vezes em que uma continuação cinematográfica conseguiu ser melhor do que a primeira parte).
Enaltecido pela crítica mais influente como exemplo do melhor Coppola desde "The Godfather" - em que pesem outros grandes momentos neste período ("A Conversação", 74; "Apocalipse Now", 79 e "O Selvagem da Motocicleta", 83), "Tucker - The Man and his Dream" é daqueles filmes que levam o espectador ao entusiasmo e - usando aqui uma expressão até certo ponto vulgar, mas bem específica - preenchendo as medidas que se exigem de uma obra cinematográfica.
Projeto acalentado por Francis e seu amigo (e produtor) George Lucas há mais de 20 anos, é a cinebiografia de Preston Tucker (1903-1956), o homem que sonhou em fazer um carro do futuro, com a máxima segurança e economia (35 quilômetros com 3 litros de gasolina) - o que, naturalmente, assustou a ganância dos poderosos da indústria automobilística - especialmente as três maiores corporações de Detroit - Chrysler, Ford e, naturalmente, a GM.
"Tucker - Um Homem e seu Sonho" é um filme up, positivo. Da seqüência de abertura - com o jovial Preston chegando em sua acolhedora casa, trazendo 12 cães de raça e entusiasmo por uma nova idéia, todo o filme transmite uma atmosfera de otimismo e esperança que mesmo as maiores dificuldades por ele enfrentadas - pressões das corporações, a imposição do péssimo caráter, Bennington (Dean Goodman) como "presidente" de sua empresa - para ajudar a conseguir acionistas e o afastamento de seu sócio e melhor amigo, Abe (Martin Landau), condenado no passado por fraude bancária - até o dramático julgamento final, que o ameaçava de dezenas de anos de cadeia - não tiram a confiança, um sorriso de pessoa positiva e a honestidade com que Ford e os roteiristas Arnold Schulmann e David Seildler construíram o personagem - numa interpretação excelente de Jeff Bridges.
O pecado de Tucker foi criar um carro bom e barato demais para o seu tempo (motor traseiro adaptado de helicóptero, velocidade de 160km/h, aerodinâmica invejável e, sobretudo, uma máxima segurança aos usuários que, na época, era desprezada pelos fabricantes de veículos).
Americano de Capac, Michigan, Preston Tucker foi criado - juntamente com o irmão - pela mãe (perdeu o pai aos dois anos de idade). Em 1923 casou com Vera Fucqua (no filme, interpretada por Joan Allen), com quem teve 5 filhos. Foi operário da linha de montagem da Ford, policial, gerente de vendas das indústrias que fabricavam Studebakers, Packards e Dodges. Sua reputação como vendedor se reforçou a partir do sólido conhecimento que demonstrava sobre os produtos que comercializava. Sempre inventivo, chegou a criar para o Exército um veículo blindado que só tinha um defeito: uma grande velocidade - e que aparece numa das primeiras seqüências.
Num desafio contra o tempo e as maiores dificuldades, conseguiu desenvolver o protótipo do carro do futuro - o Tucker Torpedo, cujo lançamento, amparado numa inteligente campanha publicitária, motivou os americanos a comprarem US$ 23 milhões de ações de sua empresa (coincidentemente, o mesmo valor da produção deste filme), mas, os poderosos de Detroit não aceitaram que sobrevivesse e o corrupto senador Hommer Ferguson (interpretado por Lloyd Bridges, pai de Jeff, que vive Tucker) seria um dos principais responsáveis pela armadilha que o levaria a justiça, acusado de não ter fabricado os veículos e enganado os acionistas. Absolvido, Tucker viria a morrer oito anos depois. Dizem alguns de seus biógrafos que chegou a pensar em fabricar um modelo, o "Carioca", na então nascente indústria automobilística brasileira (e o presidente JK seria simpático a idéia), o que poderia ter modificado a nossa própria indústria. Naturalmente que as poderosas multinacionais que aqui se instalaram nos anos 50 devem ter cuidado de puxar o seu tapete (este fato nem é mencionado no filme).
Uma produção requintada, com sua reconstituição de época das mais esmeradas (a direção de arte de Dean Tovoularis se preocupou com os mínimos detalhes) e a fotografia de Vittório Storaro utilizando técnicas visuais que, mesmo não sendo inéditas, são extremamente funcionais (conversações telefônicas filmadas ao vivo num processo de divisão de tela; palcos contíguos representam duas situações separadas por milhares de quilômetros, de tal maneira que Tucker possa, numa mesma cena, sair de smoking de uma festa para receber a chave da cidade de paletó e gravata, como se apenas atravessasse uma parede) são aspectos que tornam fascinante o filme. Uma pesquisa cuidadosa, com utilização de filmes publicitários da Tucker, bem como seqüências familiares (além da participação da neta, Cynthia Tucker, como consultora) enriquecem sinceramente o filme. Também o compositor Joe Jackson, encarregado de coordenar a trilha sonora (editada no Brasil há 90 dias pela Polygram) somou a temas inéditos, músicas de época e alguns dos jingles com os quais a Tucker anunciava pelo rádio (e ainda iniciante televisão) "hoje, o carro do futuro". Carmino, pai de Francis Coppola, compositor de (quase) todos seus filmes também colaborou, já que mais do que qualquer outro, este teve um aspecto familiar: desde o clima de Preston e seu amor pela esposa e filhos, a lealdade com os amigos, até a emotiva dedicatória que Francis faz ao final, lembrando o seu filho, Gio (Giancarlo), morto aos 17 anos em 27 de maio de 1986, num acidente de barcos, quando das filmagens de "Jardins de Pedra").
Impressionante é a presença de Dean Stockwell, numa seqüência um tanto estranha, como o multimilionário (e também inventor e igualmente perseguido pelos canalhas de Washington que representavam interesses de grandes empresas) Howard Hughes (1905-1976) que, surpreendendo ao próprio Preston Tucker, lhe dá a dica sobre a fábrica de helicópteros, livre das pressões do governo e das empresas automobilísticas, que lhe poderia resolver os problemas no fornecimento do motor para seus veículos. Assim como Anthony Quinn, aparecendo apenas 8 minutos em "Sede de Viver" (Just for Life, 1956, de Vincent Minelli), como o pintor Gaughin, ganhou o Oscar de melhor coadjuvante, Stockwell, por esta brevíssima presença foi indicado ao mesmo prêmio - embora perdendo para Kevin Kline ("Um Peixe Chamado Wanda").
Admirável, positivo dentro da melhor tradição do cinema capaz de enaltecer - sem glorificar - pessoas que merecem ser mais conhecidas, "Tucker" sofre, como obra filmada, o mesmo destino dos veículos que ele produziu (51 carros, dos quais 46 ainda existentes, um deles num museu de carros antigos em São Paulo): a frustração de não atingir o público maior. Um filme que mereceria no mínimo três semanas de exibição encerra, melancolicamente, hoje, sua carreira em Curitiba.
LEGENDA FOTO - Coppola: em "Tucker", o sonho do americano que queria fazer o melhor automóvel.
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