Vinícius, como nasce a Poesia
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 29 de abril de 1973
Vinícius de Moraes começa a cuidar na próxima semana, em São Paulo, de um novo disco. Vai chamar-se "Vinícius Triste" e so sairá em novembro, já pela Philips (atualmente Vinícius e Toquinho estão pressos por contrato a RGE). Com produção de Roberto Menescai, o disco mostrará Vinícius com suas melhores músicas, evidentemente temas românticos, com diversos parceiros. Também dirá alguns poemas, inéditos de seu aguardado livro sobre o Rio de janeiro, no qual, no final do ano passado, em Salvador, trabalhou bastante. Apesar da cansativa temporada - primeiro em Salvador, posteriormente no Recife e Porto Alegre, agora em São Paulo (Tuca, até 5 de maio). Vinícius demonstrou nas 36 horas que passou em Curitiba, no inicio da semana (só viajou as 18 horas de terça-feira, num táxi-aéreo da Reta), estar em perfeita forma. Com seu uisquinho na mão (é mito que beba em excesso: bebe sempre e bem, mas não em excesso), permanente atenção para com todos que o procuram, falou da casinha que está construindo na Praia de Itapoã e para a qual aceita fazer uma nova excursão pelo Brasil (precisa Cr$ 200 mil, o que deverá faturar até o final de junho). Mesmo `cansado, após as duas sessões do Paiol, na noite de segunda-feira, comendo um filét-griset no Palácio, regado a bom vinho branco, entusiasmou-se ao falar de seu amigo Jaime Ovalle (1894-1955), uma das personalidades de maior influência na vida literária brasileira nos anos 30-50 e que morreu deixando uma mínima obra: o livro de poesias "The Foolsh Bird" (escrito em inglês, por uma de suas mulheres) e algumas letras de música inclusive "Azulão", em parceria com o poeta Manuel Bandeira). Falando de Ovalle, Vinícius conta como nasceu um poema: "Não há o momento certo, a hora exata. Por exemplo, um dia eu fiz uma entrevista com Ovalle, para Manchete, com perguntas bem malucas: Por que os açougues não abrem a noite? Quem acenou o Cruzeiro do Sul? O que é o câncer? Ele, que era um homem estranho e que tinha o pensamento sempre poético, disse: O câncer e a tristeza das células. E isto serviu como epígrafe ao meu poema "Sob o Trópico do Câncer que não tem nada em comum com Henry Miller". Iniciado em 1960, só em 1969 o poema ficou pronto, dito até hoje apenas pelo pacto no recital na Livraria Quadrante, em Lisboa e Registrado em disco pelo incansável Irineu Garcia ("Vinícius em Portugal", Festa-phonogram). Inédito no Brasil (aqui ainda não foi publicado), apresentamos com autorização do autor - a primeira parte deste longo Poema de Vinícius no total ocupando dez páginas, em suas sete partes.
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Sai câncer, desaparece, parte, Sai do mundo.
Volta à galáxia onde formetam os íncubos da vida, De que és a forma inversa.
Vai, foge do mundo,
Monstruosa tarântula,
Hodiendo caranguejo incolor
Fétida anêmona.
Sai, câncer!
Furco anão de unhas sujas e roídas.
Monstrengo sub-reptício,
Glabre homúsculo,
Que empestias as brancas manhãs
Com teu suave mau cheiro de necrose,
Enquanto largas sob as portas
Teus imundos volantes genocidas,
Sai, gent out-ens, Hinaus, mit Ilhen!
Tu e tua capa de matéria plástica,
Tu e tuas galochas,
Tu e tua gravata carcomida,
E torna, abjeto,
Ao trópico cujo nome roubaste.
Deixa os homens em sossego,
Ódios mascate.
Fecha o zip da tua gorda pasta,
Que amontoas caranguejos, baratas, sapos, lesmas
Movendo-se em seu visgo,
Em meio a amostra de óleos, graxas, corantes e germícidas.
Sai, câncer,
Fecha a tenaz e diz adeus à Terra
Em saudação nazista.
Galga, aranha, contra o teu próprio fio,
E vai morrer de tua própria síntese
Na poeira atômica
Que ora se acumula na cúpula do mundo.
Adeus, grume louco,
Multiplicador incalculável.
Tu, de que nenhum computador
Jamais seguiria a matemática.
Parte, ponete, fuera, andate via!
Glauco esperto, gosmento camelo
Da morte anterior à eternidade.
Não ès mais forte do que o homem.
Rua!
Grasso e gomadinado prestanista
Que prescreve a dívida humana sem aviso
prévio.
Ign-óbil, meirinho câncer, vil tristeza.
Amada,
Tranca a porta; corta os fios.
Não preste nunca ouvidos
Ao que o mercador contar.
FOTO LEGENDA- Vinícius, e poema inédito
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