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Aramis

Só agora, 47 anos depois, o samba que foi ao navio

Dona Neuma não pode comparecer. Fez falta. Também dona Zica - viúva de Cartola, que a acompanharia, na última hora ficou impossibilitada de se deslocar de Mangueira para Ipanema, onde, na noite de quarta-feira, 25, no pequeno Doble Dose, aconteceu o mais aguardado lançamento musical em termos históricos: o disco Native Brazilian Music, gravado há 47 anos a bordo do navio Uruguai, sob a supervisão do maestro inglês Leopoldo Stokowski e organização do maestro Villa-Lobos - sob cuja égide sai esta edição de 3 mil exemplares da mais rara gravação de nossa MPB, dizia: - Este disco faz parte da tradição oral. Todos falam mas ninguém o conhecia. - Fazendo questão de transferir os cumprimentos para Suetonio Valença e Jairo Severiano que conseguiram viabilizar a edição. Turíbio acrescentava: - Na verdade, eles é que souberam descobrir o tesouro. Eu apenas apoiei a descoberta! - Realmente, Native Brazilian Music é um tesouro para todos que se interessam pela música brasileira. Dos que participaram da histórica gravação restam poucos: as pastoras Cecéia e dona Neuma, da Mangueira; o compositor Carlos Cachaça, parceiro de Cartola, e os violinistas Aloisio Dias e Laurindo de Almeida - este radicado há 40 anos nos Estados Unidos, e que deverá receber um disco pelo Correio. - "Ele vai se emocionar: "- garante Jairo Severiano, que com esta produção completa 17 discos fora de série, todos trabalhos culturais da maior expressão, e que foi também responsável pelo belíssimo álbum duplo em homenagem a Antônio Carlos Jobim, que acompanhado de um livro escrito por Sérgio Cabral está sendo lançado nesta semana em tiragem exclusiva para a Fundação Emílio Odebrecht (que em 1986, já havia feito homenagem idêntica a Dorival Caymmi). - A História - Ary Vasconcelos, pesquisador e crítico musical, uma dezena de livros publicados, conta a história desta gravação tão famosa quanto - até agora - desconhecida. Às 19 horas do dia 7 de agosto de 1940 - uma quarta-feira (vejam a precisão!), o maestro Leopoldo Stokowski (1882-1977), que viajava no navio Uruguai, desembarcou no Rio de Janeiro, procedente de Nova Iorque. Stokowsky era então um dos nomes mais famosos da época. Tornou-se popular após a exibição do filme "Cem Homens e uma Menina", em que regia, sem batuta, a "Rapsódia húngara n.º 2", de Franz Liszt, e contracenava com a estrelinha e cantora Deanna Durbin (no mesmo ano havia feito a direção musical do clássico desenho de longa-metragem "Fantasia", para Walt Disney). Stokowski viajava sob o patrocínio do Departamento de Estado, que desenvolvia na América do Sul a chamada política da Boa Vizinhança, criada pelo presidente Franklin Delano Roosevelt. Trazia a All American Youth Orchestra para realizar dois recitais no Rio de Janeiro - marcados para as noites de 7 e 8 de agosto. Mas vinha também gravar discos de música brasileira para um congresso folclórico pan-americano que, o que se saiba, não chegou a se efetuar. Mais do que promover congressos, interessava aos EUA agradar a América Latina. Afinal, desde 1939 o mundo havia mergulhado na II Grande Guerra. Stokowsky pediu ao seu amigo Villa-Lobos para reunir compositores e intérpretes para as gravações. Villa procurou Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos, 1889-1974), que juntos buscaram artistas e repertório. Até o terreiro do pai-de-santo Zé Espiguela (José Gomes da Costa), no Engenho de Dentro, foi visitado várias vezes. Assim, quando os artistas brasileiros chegaram a bordo do Uruguai para efetuar a primeira sessão de gravação, na mesma noite de 07 de agosto em que Stokowski se apresentava no Municipal, já estava tudo preparado de parte a parte. A máquina de gravação pronta para ser acionada, os técnicos americanos de Columbia nos seus postos (após o concerto Stokowski voltou ao navio para assistir às gravações). Dos artistas brasileiros, compareceram, entre outros, Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Luís Americano, Jararaca, Ratinho, Janir Martins, Mauro César (José Nascimento), Zé Espinguela, Augusto Calheiros, Cartola e Zé da Zilda, na época conhecido como Zé com Fome. Foram gravados, inicialmente, alguns números com Pixinguinha, um repertório de frevos e maracatus. Luís Americano executou depois alguns choros dos quais seria aproveitado apenas "Tocando pra você". A seguir, os números cantados por Janir Martins, Zé da Zilda, incluindo "Seu Mané Luis" e "Festa encrencada" samba de breque. A sessão prosseguiu com Cartola e um coro de pastoras da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira: quatro sambas do próprio Angenor de Oliveira, entre eles "Quem me vê sorrir", escrito em parceria com Carlos Cachaça. Jararaca e Ratinho cantaram "Bambo do bambu" (que, seria sucesso nos EUA com Carmem Miranda, cantando inclusive em filmes). Calheiros interpretou modinhas de Jararaca e Raul Morais Em seguida, quatro corimas com os velhos da Saudade do Cordão. Duas marchas-rancho de Donga e David Nasser, com Mauro Cesar: "Meu jardim" e "Quando uma estrela sorri". Dos homens autores, com Janir Martins e Zé Zilda: "Samba da lua" e "Sofre quem faz sofrer". O último número gravado foi justamente o que mais sucesso alcançou. "Urubu malandro", de Louro, arranjo do próprio Pixinguinha (infelizmente, por motivos que se desconhece, o "Urubu" ficou com 16 outras gravações inédito). A sessão terminou as três horas e na noite seguinte foram feitas as demais gravações, incluindo as músicas de Villa-Lobos. Ao todo foram gravadas 40 composições (na verdade 39, já que "Ranchinho Desfeito" teve duas gravações). Provavelmente ainda em 1940, a Columbia lançou nos EUA, dois álbuns de quatro discos (78 rpm, é claro, pois o elepê ainda não existia) com o nome de "Nativa Brazilian Music" (C-83/C-84, contendo 17 destas gravações, menos da metade do total registrado. Estas gravações nunca chegaram ao Brasil. Jairo Severiano conta nos dedos os que chegaram s possuir a raridade. Lúcio Rangel, Vasco Mariz, Almirante... Há dez anos, duas tentativas foram feitas para editar em elepê este material. Uma de parte do Instituto Nacional de Música, quando o seu primeiro diretor, Marcos Nobre (agora presidente da Fundação Cultural do Distrito Federal) promoveu reedições históricas. Ary Vasconcelos fez contatos com a CBS mas não conseguiu levar adiante o projeto. O editor Marcos Marcondes, da Art Editora, de São Paulo, fez mais: chegou a montar um elepê, prensou cem cópias como prova - e pretendia fazer uma edição para acompanhar os dois volumes da "Enciclopédia da Música Brasileira". Entretanto, houve apenas ameaças de que a edição seria confiscada porque a CBS não autorizaria a prensagem - alegando que seus direitos pertenceriam ao Departamento de Estado. E as 100 cópias se tornaram também raridade. Finalmente, obteve-se a autorização: o Departamento de Estado, consultado oficialmente em Washington, disse que os direitos pertenciam a Columbia (CBS) e esta, finalmente, autorizou a edição. Suetonio Soares Valença, pesquisador, autor de "Tra-Lá-Lá" (uma biografia de Lamartine Babo, agora a caminho da segunda edição), como assessor da Pró-Memória conseguiu recursos que possibilitaram o pagamento da montagem de uma fita com a reprodução das músicas da coleção do embaixador Vasco Mariz (que estava em melhor estado de conservação e graças aos cuidados do produtor executivo Jairo Severiano, os ruídos foram praticamente eliminados. Resultado: se tem agora esta preciosidade sonora, vendida apenas no Museu Villa-Lobos e com uma tiragem que tende a se esgotar em pouco tempo. LEGENDA FOTO: Villa-Lobos e Donga: único documento existente da época, a bordo do navio Uruguai com o maestro Stokowski.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Nenhum
8
02/12/1987

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