Login do usuário

Aramis

Bruxas que fazem pensar estão reunidas no Guaíra

Paulo Gorgulho, o novo "darling" das telenovelas brasileiras que foi catapultado a superstar por seu personagem José Lucas de Nada em "Pantanal" - afinal terminada na Rede Manchete, deverá estar hoje na platéia do Auditório Salvador de Ferrante. No final, entre abraços e cumprimentos - e muitos pedidos de autógrafos, naturalmente no fundo, no fundo, por certo estará amargando uma frustração: a de não ter feito o personagem John Proctor, em "As Bruxas de Salém". Boa vontade não lhe faltou, que o diga Marcelo Marchioro, que desde que começou a viabilizar a produção deste peça pensou em seu nome. Interessado em mostrar que é capaz de mostrar talento num palco - e deixar apenas a desgastada imagem televisiva, superficial e pouco reconhecida - Gorgulho mostrou-se acessível. Não impôs exigências financeiras que não pudessem ser cobertas por um mínimo orçamento, estaria disposto a romper com a poderosa Rede Manchete para passar dois meses em Curitiba fazendo a peça - entre ensaios e temporada. Infelizmente, como a Fundação Teatro Guaíra já havia exaurido seus recursos - especialmente por discutíveis produções como foi "New York segundo Will Eisner" e mesmo onerosas encenações operísticas - o orçamento da peça de Arthur Miller foi o mais enxugado e com isto dançou a possibilidade de Gorgulho trazer sua popularidade ao último espetáculo produzido pelo TCP neste ano. Para interpretar este personagem, Marchioro escolheu o atlético Mário Schoemberger, que mesmo com todos os elogios recebidos por sua atuação em "Mistérios de Curitiba", havia sido escamoteado por Ademar Guerra, quando este negociou a temporada carioca com o ator-empresário Armando Bogus. Assim, quem não tem Gorgulho vai de Schoemberger e coube a este fazer o principal personagem de "Le Crucible", na primeira grande montagem profissional deste notável texto de Miller que acontece no Brasil nos últimos 25 anos. xxx Muita água passou pelo rio entre a estréia deste libelo contra a intolerância e a injustiça no Martin Beck Theatre, em Nova Iorque, em 22 de janeiro de 1953 (após algumas encenações off-Broadway), até este final de milênio, mas o texto não envelheceu. Assim com são os verdadeiros clássicos - dos gregos a Shakespeare - a obra de Miller tem a dignidade, a importância e a grandeza dos momentos dramatúrgicos que, capturando o real e extrapolando verdades iluminarão sempre os palcos do mundo. Marcelo Marchioro, 36, há quase 20 anos, sonhava em dirigir esta peça. Embora nunca tenha assistido a notável adaptação cinematográfica que o (quase) desconhecido Raymond Roulleau fez em 1957, praticamente sob auspícios do PC francês - e então com os ativíssimos Yves Montand e sua mulher, Simone Signoret (1921-1985) nos papéis centrais, Marchioro leu toda a obra de Miller, interessou-se por macartismo e bruxaria e, este ano, nas duas longas viagens que fez à Alemanha assistiu avançadas montagens da peça (anteriormente já havia conhecido uma encenação portenha, no tempo em que seu limite de turista cultural era aos países do Prata). Tinindo de conhecimentos millerneanos, Marchioro fez das tripas coração e, quase mendigando, conseguiu que a Fundação Teatro Guaíra (e nisto a generosidade de Constantino Viaro foi significativa) levantasse Cr$ 5 milhões para a produção. O resultado compensou. "As Bruxas de Salém" é, de longe, o melhor espetáculo teatral montado em Curitiba nos últimos anos e devolve a dignidade ao TCP, que vinha perdendo pontos com brincadeiras paulistas como "Noites da Taverna" e quadrinhólogas, que pouco acrescentaram, em termos culturais, a um grupo que, nos anos 60 - graças a nomes como Otávio Ferreira do Amaral na coordenação e Cláudio Corrêa / José Renato / Ivan Albuquerque na direção artística - teve momentos antológicos. xxx Um público basicamente jovem - entre 13 a 25 anos - que mesmo ignorante em relação ao que foi o Macartismo - e as relações que levaram a Miller escrever, simbolicamente, uma peça sobre bruxaria inspirado em fatos reais acontecidos na Nova Inglaterra, em 1692 - participa e chega a vibrar com o espetáculo. Após dois atos em três horas de tensão, aplausos demorados confirmam que a encenação atingiu o alvo e mesmo que apenas 0,9% do público que está lotando o Auditório Salvador de Ferrante há duas semanas e meia (a temporada, infelizmente, encerra-se domingo, 16) reflexione a respeito, já se justificou o investimento cultural-político feito. Uma peça como "As Bruxas de Salém" exige gente competente na direção. Além de competente, Marcelo Marchioro é suficientemente sensível para fazer espetáculos que o colocaram como a maior revelação na direção das artes cênicas no Brasil nestes últimos anos - ao lado de José Possi Neto - e se o seu reconhecimento ainda restringe-se ao Paraná e alguns círculos paulistas, é tudo uma questão de tempo. O lugar que Flávio Rangel deixou vago pode ser, tranqüilamente, ocupado por Marchioro, que como aquele inesquecível diretor paulista, tem a perspicácia de alternar encenações que valorizavam desde um simples show musical (como faz nos shows da cantora Simone) aos mais densos textos clássicos ou com as peças up to date trazidas da Broadway. Mesmo com pouco tempo para a direção - a definição da produção enrolou-se nos cipoais burocráticos e por pouco que a peça não teria sido cortada da programação de encerramento cultural da administração Viaro - Marchioro, como bom feitor de talentos, usando a chibata do entusiasmo, fez com que um elenco esforçado desse o melhor de si. Foram mais de 30 dias de ensaios de 10/11 horas para obter os resultados que se vê agora no palco e que permitem reconhecer alguns talentos emergentes notáveis, enquanto outros, veteranos - como Florival Lopes (Thomas Putman), Sansores França (Juiz Hathorne) e, especialmente Enio Gonçalves - (de longe, a melhor interpretação de todas, após anos de ausência, como o vice-governador-inquisidor Danforth, tem a melhor atuação entre todos) - retornam aos palcos. No (grande) elenco feminino, a revelação fica para um belo rostinho e imensa densidade dramática chamada Christiane de Macedo, como a lolita-fatale Abigail Willians, que desencadeia todo o processo enlouquecedor da temporada de caça às bruxas. Mesmo sem maior experiência numa personagem principal - como acontece agora, Christiane une ao seu belo rostinho, uma carga dramática, dicção perfeita, que só não eclipsa os trabalhos de suas colegas porque ao ampliar o número de personagens femininas e escolher jovens atrizes, Marcelo foi duro nos ensaios e exigiu o máximo de esforços de cada uma. Assim, Chris Gomes (Susana Walcott), Erica Migon (Mercy Lewis), Giovana Soar (Mary Warren), Leonilda Kusse (Rebecca Nurse), e, especialmente, Silvia Natureza - como Elizabeth Proctor, estão também marcantes. Especialmente, Silvia Natureza, no segundo ato, após meses de prisão, cabelos raspados, em andrajos, compõe dramaticamente sua personagem - surgindo como uma Joana D'Arc das imagens de "Santa Joana" que Jean Seberg (1938-1979), no auge de sua carreira, viveu em 1957 quando Otto Preminger (1906-1986) transpôs a tela a peça de Bernard Shaw. Embora se façam tais destaques, todo o elenco está digno e competente, naturalmente com alguns encontrando dificuldades vez por outra - mas que não invalida o espetáculo. Os cenários criados por Tony Silveira - num simbolismo que constrói a imagem huis clois, abafante, do clima introspectivo e noir dos acontecimentos - em contraposição aos figurinos realistas de Tony Silveira, mostram que temos gente talentosa, capaz de fazer ótimos trabalhos. Além de traduzir o texto, Marchioro também soube escolher os temas precisos de Carl Orff (1895-1982), com sua música em que usando o profano e o sagrado, o erótico e o religioso, complementam esta peça sobre a essência do ser humano - como define seu encenador - e que mereceria debates, ensaios e polêmicas - além de uma temporada mais extensa.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
24
13/12/1990

Enviar novo comentário

O conteúdo deste campo é privado não será exibido publicamente.
CAPTCHA
Esta questão é para verificar se você é um humano e para prevenir dos spams automáticos.
Image CAPTCHA
Digite os caracteres que aparecem na imagem.
© 1996-2016. tabloide digital - 35 anos de jornalismo sob a ótica de Aramis Millarch - Todos os direitos reservados.
Desenvolvido por Altermedia.com.br