Do Carmo, a pintora com a fértil poesia
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 07 de junho de 1989
Vivo com minha verdade
numa ilha de ingenuidades.
Para quem traz no genes essa certeza
Como sobreviver à nova realidade?
("Verdades")
Artisticamente ela é apenas Do Carmo Fortes, nome conhecido como pintora "naif", longo curriculum de exposições e premiações. Se usasse o sobrenome paterno, lembraria um dos políticos mais marcantes das décadas de 40 e 50: Tenório Cavalcanti (1907-1975), líder populista, político, deputado federal, que deixou uma lenda viva na Baixada Fluminense, especialmente em Duque de Caxias, Estado do Rio de Janeiro, onde viveu a maior parte de sua vida. Há três anos, quando o cineasta Sérgio Rezende realizou "O Homem da Capa Preta" - suave e respeitosa biografia de Tenório, sucesso de público e que obteve os principais Kikitos no 15º Festival do Cinema Brasileiro de Gramado (no qual Rezende concorre na próxima semana com seu novo filme, "Doida Demais"), Do Carmo decidiu oferecer uma familiar biografia sobre o seu pai. Assim, poucos meses após a Record ter editado a tese sociológica "Capa Preta e Lurdinha - Tenório Cavalcanti e o Povo da Baixada" de Israel Beloch (194 páginas, 1986), na qual ao invés da fria metodologia sócio-histórica, Maria do Carmo Cavalcanti Fortes oferecia a sua visão de filha e, durante uma certa época, secretária pessoal de Tenório - um homem que, em seu estilo, foi um mito da vida política ao longo de mais de três décadas.
Casada com um militar, o general Sérgio Fortes, três filhos, há 31 anos residindo em Curitiba, Do Carmo Fortes, próxima dos 57 anos - a serem comemorados no dia 17 de julho, sente-se hoje com mais vigor do que aos 25. Especialmente após freqüentar um curso de auto-conhecimento pelo processo Fish Hoffman, sua capacidade criativa triplicou: novas telas - mudando inclusive o estilo, várias exposições programadas e uma atividade intelectual intensa: após a decisão de selecionar do muito que já havia escrito em poesia o material para um livro, "essencialmente pessoal" ("Fértil Silêncio", 168 páginas, editora Lítero Técnica, maio/89), está revisando os originais de um original trabalho - "Jota, a Letra que Faz a História") e tem outro livro em fase de gestação, "O Doce Aroma do Azul".
Em noite de autógrafos, paralelamente a uma amostra de 20 novos trabalhos de pintura, em novo espaço cultural da cidade (Livraria Ypê Amarelo), Do Carmo Fortes trouxe uma amostragem de sua poesia - suficientemente amadurecida para merecer elogios de poetas maiores, como Helena Kolody - que com toda sua ternura sabe, entretanto, se manter discreta quando os originais a ela submetidos não lhe agradam. Em relação a Do Carmo, o aval de dona Helena é espontâneo, embora não impresso. Quem lhe fez a apresentação é um amigo de muitos anos, Barboza Leite, escritor, poeta, artista plástico da cidade de Duque de Caxias, que lembra que os versos de Do Carmo são repassados de ternura, "uma pintora que transfere de seus quadros para a linguagem cândida de seus poemas, o mesmo clima de dolorida expectativa sobre os sustos que afloram no cotidiano".
Uma poesia trabalhada mas simples, com a comunicação que a faria uma letrista ideal para um parceiro musical, pois seu "Verso Alado", que abre o livro, já é, em si, uma canção a espera de música:
"Vai meu verso, voa/mostra ao mundo
que não foste feito atoa
Vai, verso alado/sem compromisso
leve a todos o meu recado:
sou, também, pintor de versos/não posso
ficar omisso
preciso participar/desta forma de
processo
Vai, poesia minha, eu quero
mas traga-me, urgentemente,
a resposta e a segurança
que tanto espero.
A poesia flui de forma simples na visão de Do Carmo. Como em "Mobilização":
É preciso se fazer uma campanha
Não contra a destruição da natureza
nem contra a guerra, nem contra a fome
mas, principalmente, para devolver
a paz ao homem!
Uma sombra lírica de nostalgia, também surge:
Modestamente vivendo/num só armário
cabiam
os bens de toda a família:
duas saias, quatro blusas/duas calças e
três camisas
tão poucas eram as pretensões...
não ocupavam espaço/nem pesavam nas
divisas.
Eram os simples mais felizes
sem angústias, consumismos,
supérfluos ou ambições.
Bóia de meia, boneca de pano,
contentava as crianças
nas festas de fim de ano.
Não havia tantas coisas...
mas como sobrava esperança!
("Nos tempos de saia e blusa)
LEGENDA FOTO - Do Carmo Fortes, pintora e poeta: um livro de sensibilidade.
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