Este Brasil ingênuo do filme de André Klotzel
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 11 de outubro de 1986
Fernanda Torres, a estrela-86, em dose dupla na cidade. Continua em cartaz como a sofrida adolescente Eliane Maciel em "Com licença, eu vou à luta", de Lui Farias (Ritz, 5ª semana), enquanto que, como uma sapeca cabocrinha está em "A marvada carne" (São João, desde quinta-feira).
André Klotzel, 33 anos, diretor de "A marvada carne", onze prêmios no Festival de Gramado-85, convidado para 15 festivais no Brasil e Exterior e que já rendeu Cz$ 8 milhões, veio a Curitiba para ajudar na badalação deste seu filme de estréia.
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Paulista, aprendizagem no curta-metragem - realizou três, entre 1975/81 ("Eva", "Dr. Kaneta" e "Gaviões"), Klotzel conseguiu em "A marvada carne", um filme profundamente brasileiro, retratando o universo caipira-paulista e, ao mesmo tempo, pelo requinte e qualidade técnica da produção, fazer uma obra que chega às faixas mais sofisticadas do público. Isto é importante lembrar, já que o estigma de "filme caipira" e a presença no elenco de uma dupla rural como Tonico & Tinoco, pode, a princípio, afastar platéias ditas intelectualizadas.
Adaptação livre de "Na carreira do divino", peça de Carlos Alberto Sofredini, que o Pessoal do Victor encenou com sucesso, por mais de um ano, no Rio e São Paulo (fazendo também uma temporada em Curitiba), "A marvada carne" nos remete a um universo simples e ingênuo, com personagens bem construídos e, especialmente, bem interpretados por um ótimo elenco - como Adilson de Barros (que, aliás, recria o papel que havia feito em "Na carreira do divino"), Dionísio Azevedo, Geny Prado (atriz presente em quase todos os filmes de Mazzaropi), Regina Casé (participação especial e mefistofélica, numa das mais engraçadas seqüências), sem falar, é claro, em Fernanda Torres - que, quando rodou este filme, ainda não havia mergulhado na neurotizada personagem de "Eu sei que vou te amar", de Arnado Jabor, nem na complicada e rebelde de "Com licença, eu vou à luta".
A Fernanda Torres de "A marvada carne" está muito mais para a ingênua cabocla de "Inocência" (1983, de Walter Lima Filho), seu primeiro filme, do que das personagens urbanas que se seguiram. E justamente por ter uma formação urbana - filha de dois monstros sagrados do teatro brasileiro (Fernanda Montenegro/ Fernando Torres), Fernandinha mostrou no filme de Klotzel todo seu potencial de atriz, numa criação admirável, que, por unanimidade do júri, lhe valeu o Kikito no festival de Gramado, em abril de 1985.
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Em sua simplicidade, pureza e beleza, "A marvada carne" é um filme-enlevo para com as coisas de um Brasil que hoje já não mais existe. O universo caipira que Sofredini imaginou para seu "Na carreira do divino" - inspirado no básico trabalho sociológico de Antonio Cândido ("Os parceiros do rio bonito"), com a linguagem típica, o bucolismo de uma vida rural sem problemas maiores - cedeu lugar a uma realidade mais dura. Hoje o homem do Interior recebe informações via Embratel, perdeu o sotaque devido à globalização da televisão mas, em compensação, ainda enfrenta os problemas de sobrevivência. Seo "Nho Quim" (Adilson de Barros) sonha em comer "a tal da carne de boi", mas tem o seu feijão-com-arroz; aos poucos, os caipiras deste final de milênio vão perdendo até os frutos da terra - já que o boi gordo passou a ser também um sonho para a população urbana, mesmo com os confiscos de Funaro & Sarney.
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"A marvada carne" é um filme verde-amarelo, com toda a beleza e espontaneidade de um Brasil ingênuo que desaparece. Mas que fica na ficção e sensibilidade da equipe que, num belo trabalho cooperativo, realizou este momento feliz de nosso cinema.
LEGENDA FOTO - Adilson de Barros em "A marvada carne": o caipira frente às novas tecnologias num filme de sabor verde-amarelo.
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