Fábula de Sérgio sobre um elefante dorminhoco
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 07 de julho de 1989
Sérgio Ricardo poderia ser definido com muitas adjetivações. Compositor e cantor bossa-novista, cineasta, líder político na classe artística, ator de telenovelas nos tempos pioneiros do vídeo paulista, artista plástico, escritor, etc. Para o grande público a imagem lembrada é a do cantor irado, que no palco da TV Record, há 22 anos passados, quebrou o violão quando as vaias de um público idiotizado o impediram de concluir seu "Beto Bom de Bola". O tempo passou, Sérgio fez dezenas de obras espalhadas pela música e cinema, mas sempre aparece alguém para lhe perguntar a respeito daquele incidente...
Aos 57 anos, completados no último dia 18 de junho, Sérgio Ricardo - no registro civil João Mansur Fufti, filho de uma família de imigrantes libaneses de Marília, São Paulo - não é um homem amargurado. É, isto sim - e como milhões de outros brasileiros - descrente e triste com os caminhos deste nosso país, onde a mediocridade e desonestidade são premiadas e os talentos esquecidos. Sérgio como vários outros nomes que fizeram a renovação da MPB nos anos da Bossa Nova - e entre eles, basta citar apenas um exemplo: Carlos Lyra, que há mais de uma década deixou de gravar - raramente é visto na televisão (a não ser em nostálgicos especiais da Bossa Nova, com aproveitamento da famosa cena da quebra do violão), mas nem por isto parou de produzir. Trabalha isolada e discretamente, afastou-se por completo dos meios badalativos e sua obra é diversificada. Há cinco anos fez uma ópera-ballet a partir de um poema de Carlos Drummond de Andrade ("João Joana"), tem realizado alguns curta-metragens e há muito estão prontos os roteiros de dois longa-metragens que marcariam seu retorno ao cinema: "Zelão", e, por último, uma transposição à tela do próprio "João Joana", uma jovem que como o Riobaldo, de Guimarães Rosa, tem que se disfarçar de homem para não sofrer os preconceitos da sociedade machista.
Em Sérgio Ricardo convive aquela admirável capacidade de (ainda) se indignar pelos desmandos e corrupções - e o que o fez líder do movimento Sombrás, no final dos anos 70, lutando contra a máfia dos direitos autorais no Brasil, e também a ternura romântica que o fazia, no desabrochar dos anos 60, gravar dois dos mais belos álbuns da Bossa Nova ("A Bossa Romântica de Sérgio Ricardo" e "Não Gosto mais de Mim", EMI/Odeon, há muito merecedores de reedições em CDs), com clássicos como "Buquê de Isabel", "Pernas", "Puladinho" e "Relógio da Saudade". Falar de Sérgio Ricardo cineasta é tema para longas divagações, pois desde seu primeiro curta, "Menino da Calça Branca" (1961) ao seu terceiro longa, "Noite do Espantalho" (1974), revelou-se uma das maiores capacidades no cinema, com obras premiadas em vários países - mostrando a sua sempre presente visão olho-coração-canção (e é bom lembrar que a antológica trilha sonora de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de seu amigo Glauber Rocha, foi por ele criada em poucos dias de estúdio).
Sérgio Ricardo passou o último Carnaval sem sair de sua casa na Urca. Ali, em seu atelier de artista plástico - atividade que o vem ocupando nestes últimos anos (e inclusive lhe garantindo a sobrevivência, com algumas exposições bem sucedidas), trabalhou nas ilustrações sobre um elefante que dormiu durante 500 anos e que por isto as raposas lhe cortaram seus marfins. Desenhos com uma marca visual impressionista, verdadeiro "story board" para um filme de animação - e que ganharam um texto preciso, rápido e profundamente político. Resultado: seu amigo, o editor Geraldo Jordão Pereira, da Salamandra - uma das mais requisitadas casas publicadoras do país (mas que trabalha só com projetos especiais) está lançando "O Elefante Adormecido", mais do que um livro infantil, uma obra de reflexão.
No dia 1º de julho, sábado, à tarde, Sérgio Ricardo autografou seu livro na livraria Malasartes (Shopping da Gávea, Rio de Janeiro), pois mesmo avesso a badalações não pode resistir aos apelos de centenas de amigos. Pela beleza e atualidade deste seu livro, a forma inteligente e crítica como mostra uma estória (aparentemente) destinada à crianças, coloca questões para fazer cabecinhas (e cabeçonas) refletirem. Como um grande fabulista e escrito com a matéria prima de que se fazem as utopias, como disse o educador Paulo Freire, essa nova experiência artística de Sérgio Ricardo é, "ao mesmo tempo, uma lição de História e uma canção de esperança". Freire disse mais: "Gostaria que crianças e adultos o lessem sonhando com o dia em que, sem gorilas, e sem raposas, seja "respeitado" o direito do bicho-homem, da terra e da plantação".
Como toda boa história infantil, "O Elefante Adormecido" faz a criança raciocinar. Assim a fábula do elefante que, aconselhados pelas raposas, dormiu por 5 séculos, traduz toda a visão de um país que também adormeceu demais (qualquer semelhança...). Conta Sérgio na página 20 que, enquanto dormia, pensando que sonhava com um roque-roque que ouvia, "era o ranger dos dentes frios de uma serra serrando aos poucos seus marfim, que valia para o proveito das raposas de outra terra".
Na música, cinema, nas artes plásticas e agora na literatura infantil, este paulista universal, brasileiro dos mais admiráveis, continua a provar que foi o grande Aluísio de Oliveira (produtor de alguns de seus melhores discos) que sintetizou no objetivo título de um elepê, a definição de sua energia criativa: "Sérgio Ricardo, um senhor talento".
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