Lorca, poesia em Nova Iorque
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 03 de fevereiro de 1988
"A aurora de Nova Iorque tem quatro colunas de lodo
e um furacão de pombas
Que explode as águas podres
A aurora de Nova Iorque geme
Nas vastas escadarias
a buscar entre as arestas
angústias indefinidas".
(Federico Garcia Lorca, "A Aurora", 1930).
Federico Garcia Lorca foi fuzilado pelos fascistas de Franco perto de Granada, em agosto de 1936, um mês depois de iniciar-se a Guerra Civil Espanhola. Havia nascido 38 anos antes em Fuente Vaqueiros, povoado de Vega de Granada, situado a seis quilômetros de Santa Fé, onde, em 1492, os reis católicos firmaram com Cristóvão Colombo o acordo que permitira ao intrépido capitão descobrir o Novo Mundo.
Meio século após a morte de Garcia Lorca sua obra continua a ser revisitada e a surpreender. A última revelação são os poemas que escreveu justamente entre junho de 1929 a março de 1930, quando esteve em Nova Iorque.
Não se trata de um livro mas sim de um disco, produzido pela CBS espanhola há dois anos, quando das comemorações do 50º aniversário da morte de Lorca. Lançado obscuramente no final do ano passado pela CBS brasileira é difícil encontrar nas lojas, pois os comerciantes fonográficos, ignorantes em sua maioria, não se deram conta da preciosidade deste registro em que os nomes mais famosos da música em diferentes países se reuniram para homenagear ao poeta de "Bodas de Sangue".
O Brasil está representado por Chico Buarque e Raimundo Fagner que dividem o belíssimo "A Aurora", um dos mais pungentes poemas que Lorca fez em torno de sua experiência americana.
"A aurora chega e ninguém em sua boca a receber
Porque ali a esperança nem a manhã são possíveis
E as moedas, como enxames,
devoram recém nascidos".
Cada compositor-intérprete convidado para musicar um dos poemas que Lorca produziu nos meses em que esteve em Nova Iorque, numa fase difícil de sua vida (quando deixou a Espanha em grande crise afetiva), interpreta os textos em sua língua. Assim, o canadense Leonard Cohen, 54 anos - um dos nomes mais importantes da música e poesia naquele país mas que até hoje nunca teve um disco editado no Brasil - abre a gravação com "Take this Waltz", baseado no poema "Little Vien-nese Waltz". Em catalão, um dos grandes nomes da Espanha, Llouis Llach, interpreta "Els Negres", enquanto Victor Manuel diz "Nascimento em Cristo" em castelhano - mesmo idioma que Pepe e Paco de Lucia marcam "Asesinato" e Patxi Andion a belíssima "Ode a Walt Whitman" - poeta que merecia a admiração de Lorca.
A homenagem é internacionalizada em italiano por Angelo Branduardi ("Grido a Roma"), hebreu (David Broza em "Your Childhood in Menton"), grego (Georges Moustakis e Mikis Theodorakis em "Blacks Dancing to Cuban Rhythms"), inglês (Donovan, em "Unsleeping City") e alemão (Manfred Maurenbrecher em "Kleines Unedliches Gedicht", ou seja, "O Pequeno Infinito Poema"). A musicalização em torno de cada poema de Lorca não dilui a força das palavras - que mesmo declamadas - cantadas em línguas que não se conhecem - transmitem a força e a emoção com que o autor de "Romacero Gitano" marcava sua obra.
O ensaísta Ian Gibson observou que a permanência de Lorca em Nova Iorque - e depois por mais três meses em Cuba - foi a experiência mais importante de sua vida.
- "E é certo que os poemas escritos na gigantesca cidade demonstram que ali, naquela Babilônia trepidante e enlouquecedora, Lorca chegou a compreender toda a angústia do homem contemporâneo, separado brutalmente da natureza e entregue (como na novela "Manhattan Transfer", de John dos Passos, publicada pouco antes) "a los juegos sin arte, a sudores sin fruto", a uma sórdida e esgotante luta pela sobrevivência em meio a uma sociedade materialista".
Enviar novo comentário