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Aramis

A noite em que João Gilberto cantou em Curitiba (II Parte)

Como foi o fim da noite e a despedida de João Gilberto na única vez em que esteve em Curitiba? Eis uma parte que não detalhamos na crônica publicada domingo, 8, no suplemento "Almanaque", dedicado à Bossa Nova, motivada pelo boom nostálgico ao qual "Chega de Saudade - A História e as Histórias da Bossa Nova", de Ruy Castro (Companhia de Letras, 464 páginas), trouxe galões de combustível. Domingo, durante almoço conosco - e no qual participavam Paulinho da Viola, o seu pai, violonista César Faria, a cantora Christina (Buarque de Holanda) e o poeta Hermínio Bello de Carvalho, Airto Moreira, 49 anos, acrescentou uma importante revelação àquela noite inesquecível - e que até merece que Ruy Castro a inclua na segunda edição de seu livro, quando, cremos, fará algumas correções necessárias - haja visto vários (pequenos) enganos cometidos - o que é perfeitamente normal dentro de um painel tão amplo como ele reportou. xxx Airto Moreira, na época com 21 anos (agora está próximo de se tornar cinqüentão, que completará em 5 de agosto de 1991), trabalhava na noite curitibana, como baterista e cantor do King's Club, na Rua Carlos Cavalcanti (quase esquina com Alameda Cabral). Como todos os jovens que se ligavam a melhor MPB, Airto já curtia a nascente Bossa Nova e ao saber que João Gilberto viria a Curitiba ficou ouriçado. Outros músicos e cantores - como Fernando Colares, o crooner gaúcho do conjunto de Breno Sauer - então contratado do "La Vie en Rose" (na Rua Visconde de Nacar), que foi o primeiro a divulgar o repertório de Sérgio Ricardo (especialmente "Pernas") em Curitiba, também se entusiasmou. Assim naquele domingo de 1962 - o dia e o mês ainda não foi possível lembrar - decidiram trazer João para o fim da noite, já que devido a terem que trabalhar nas boites, nem Airto nem Colares poderiam ir ao programa de Paulo César, na Rádio Guairacá e no Chá Dançante de Engenharia, onde o João se apresentou profissionalmente. João Gilberto estava em excelente astral. Tanto é que - como aqui contamos domingo - fez tanto as apresentações no auditório da Rádio Guairacá, como no Chá Dançante de Engenharia (na Sociedade Duque de Caxias, na Rua Dr. Murici, onde hoje existe as Lojas Murici) numa boa, sem reclamar do som - cujas deficiências, naturalmente, eram imensas. Acessível, gentilíssimo, João atendeu todos que o procuraram e, pessoalmente o acompanhamos até uma certa hora. Quando, então, começa a segunda parte, que teve como testemunha o bom amigo Airto, hoje um dos músicos brasileiros mais respeitados no exterior, e que chegou há 5 dias da Califórnia para passar o Natal com sua família. xxx - "Sabe, a emoção de saber que João Gilberto estava na cidade nos deixou entusiasmados" - lembra Airto. "Assim, assim que terminei de fazer meu trabalho no King's Club, corri para o La Vie en Rose, onde ele deveria aparecer. Demorou, mas chegou". João Gilberto confraternizou com músicos e poucos fregueses que ali estavam, mas não cantou. Preferiu ouvir o som também novo para a época de Breno Sauer, acordeonista e pianista gaúcho que havia inovado ao trazer o vibrafone para a MPB, com toques jazzísticos, como fazia o norte-americano Art Van Damme (Michigan, 09/03/1920), Alemão (Olmir Stocker, guitarra), Pirata (Afonso Cidade, mais tarde substituído por Portinho) e Fernando Colares (crooner) que morou mais de um ano em Curitiba (posteriormente trabalhou na Marrocos, de Paulo Wendt, no início da Rua Marechal Deodoro), e foi um dos primeiros a entender a importância da Bossa Nova. Mais tarde, o grupo - que já vinha gravando para a CBS ("Viva o Samba" foi o primeiro lp) radicou-se em São Paulo, até a sua separação. Breno viajou para os EUA e nunca mais voltou, baseado em San Francisco, com uma carreira de sucesso e vários elepês gravados. Alemão, esplêndido guitarrista e compositor, já com dois elepês pelo Som da Gente. Colares retornou a Porto Alegre, onde aposentou-se como funcionário da Caixa Econômica Federal. Pirata, após a entrada de Portinho (que também fez carreira) radicou-se em Curitiba, sendo durante anos arrendatário do restaurante do Círculo Militar do Paraná. Aliás, recentemente, Breno Sauer passou anonimamente por Curitiba e o procurou em sua casa. Juntos, relembraram os anos dourados da noite musical curitibana, mas nem se animaram a ver como ela está hoje. Ficariam, no mínimo, tristes - tal a pobreza sonora das raras casas que ainda apresentam música ao vivo, em contrabalanço ao som marcante que existia nos night clubes e boites da cidade nos anos 50/60. xxx Voltando a João Gilberto - após o intervalo acima para explicar aos leitores com menos de 35 anos quem eram os músicos do La Vie en Rose (onde, ocasionalmente, também se apresentavam músicos locais, como os pianistas Gebra Sabbag e Bráulio Prado, este hoje no Habbeas Coppus), o fato é que João gostou do papo e ali ficou até o sol raiar. Quem o conhece, sabe que não era de se assustar com a claridade da manhã e o papo continuava a rolar. Airto o convidou a jantar e foram num restaurante que abrigava os mais tardios boêmios - que ele não lembra exatamente qual era, mas que deveria ser ou o Palácio velho de guerra, que continua firma na madrugada, ou o histórico Bar Paraná, na Rua XV de Novembro (demolido quando aquela via foi alargada), que era famoso por seus potpourrie, especialmente a sopa húngara. Jantaram e o papo continuou animado. Airto, mais por gentileza do que por disposição, arriscou um convite-despedida, esperando que João se animasse a voltar ao hotel: - "Bicho, que tal, você quer descansar ou tomar um café em minha casa?" - "Ah! Um cafezinho seria uma boa" (principalmente porque o restaurante, nestas horas já fechado, não servia mais café). Airto manteve a palavra. Embora residisse numa humilde residência no bairro do Portão, chamou um táxi e foram para lá. - "Só a corrida do táxi me custou o cachê da noite" - recorda. "Seo" João e Dona Zelinda, pais de Airto, receberam o convidado com amabilidade. O café com mistura foi farto e generoso e só quando Airto insistiu que era a hora de irem para o aeroporto, João se animou a dizer até logo. Afinal, sua inteligência e papo agradável encantavam a todos e era tão gentil com pessoas humildes como com nomes conhecidos. Mais uma corrida de táxi e chegam ao aeroporto Afonso Pena. Só que na hora do embarque, João pergunta a Airto: - "E o meu violão?" - "Que violão?", responde Airto. O violão que João havia carregado toda a noite havia ficado na casa dos pais de Airto. João ficou furioso. Culpou Airto pelo esquecimento e ele se dispôs a voltar e apanhar o instrumento. João ficou no aeroporto. Mais uma corrida de táxi - ida e volta - "que comprometeu meus cachês pelo resto do mês". Só que quando Airto voltou com o violão, o avião já havia partido - mas João estava firme no aeroporto. Esbravejando. Com uma santa paciência - e dedicação ao ídolo da Bossa Nova - "João era Deus", repete - Moreira ali ficou até às 14:30 horas, quando finalmente João Gilberto embarcou para o Rio de Janeiro. - "Estava sem dormir, sem dinheiro, cansado e ainda tendo ouvido todos os desaforos do mundo. Mas, no fundo, estava feliz. E voltei de ônibus, pois não tinha mais dinheiro para táxi".
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
24
11/12/1990

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