O cinema desglamorizado na visão dos bastidores
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 07 de outubro de 1981
Existem várias - e estimulantes - formas de se apreciar "O Substituto" (Cine Lido, hoje). Como um filme que revela os bastidores do cinema, se inscreve naquela categoria de "film on film", ou seja, o cinema dentro do cinema que já motivou dezenas de títulos, levantados por dois pesquisadores, Rudy Behlmer e Tony Thomas em "Hollywood's Wollywood" (The Citadel Pres, Seraucus, New Jersey, 343 páginas, 1975). Como um filme de arte é uma obra que, justamente, mereceu três indicações ao Oscar, inclusive de Peter O'Toole como melhor ator (perdendo para Robert de Niro, por "O Touro Indomável") e a Richar Rush como melhor diretor.
Entretanto, é como um filme demolidoramente mágico, quase surrealista em alguns momentos, com nítidos e claros pontos de aproximação a um clássico de Felline - "Oito e Meio" (1963), que "The Stunt Man" pode ser apreciado com uma das obras mais fascinantes desta ano cinematográfico.
Numa prova de que mesmo nos Estados Unidos, filmes que ousam uma linguagem menos convencional e se propõe a tocar o dedo em certos temas perigosos acabam sendo boicotados, é o fato de "The Stunt Man", realizado em 1979, por um produtor independente - Melvim Simon, ter permanecido meses nas prateleiras, sem obter lançamento condigno a sua importância. Seu realizador, Richard Rush, chegou a sofrer um enfarte de tanto que se incomodou a respeito e o próprio ator Peter O'Toole teve que utilizar seu prestígio para quebrar a cortina de silêncio que se impôs a respeito. Finalmente lançado, "The Stunt Man" obteve acolhida da crítica e concorreu ao Oscar-81. Mesmo sem ter recebido nenhum prêmio, conquistou o direito de chegar ao Brasil, numa distribuição da 20th Century Foz. O que já é significativo, uma vez que nos últimos anos, em face do alto custo de copiagem, direitos legais e restrições do mercado, as grandes distribuidoras só estão aqui lançando os filmes seguramente de grande sucesso popular. Com isto, obras de valor mas que não tenham, já nos =Estados Unidos, alcançado bilheterias maiores, ficam automaticamente eliminadas de lançamento na América Latina e outros países. Um exemplo disto é "Helth", a cáustica crítica que Robert Altaman realizou há 2 anos sobre o sistema de saúde americano (um tema atual também para o Brasil) continua inédito, sem falar em dezenas de outros títulos, entre os quais o do promissor Alan Rudolph, cujo "Welcome to L.A.", realizado em 1977, foi um dos mais enaltecidos exemplos de uma nova geração de cineastas americanos dos anos 70.
Stunt man é o termo que designa os doublés, atléticos profissionais que substituem os atores principais nas cenas mais arriscadas. Uma profissão importantíssima dentro do cinema, que existe desde os primórdios desta indústria mas que só raramente tiveram o seu trabalho destacado. Em 1968, um modesto cineasta italiano, Marcelo Baldi, realizou um medíocre filme intitulado "Stuntman", que no Brasil se chamou "Johnny, o Irresistível" e que tinha apenas um nome conhecido no elenco - Gina Lolobrigida - (há anos afastada das telas), enquanto o papel-título ficava com Robert Viharo, de quem nunca mais se ouviu falar.
Dez anos depois, Hal Neddham realizou, para a Warner Brothers, uma comédia sobre o mundo dos stuntman, "Hooper", com Burt Reynolds no papel-título, filme que teve boa acolhida da crítica e reunia em seu elenco alguns outros intérpretes de relativa popularidade (jan Michel Vincent, Sally Fiels, Brian Keith, etc).
Mas é, sem dúvida, Richar Rush, diretor americano, lançado pelo produtor Roger Corman, há 21 anos com "Cedo Demais para Amar" (Too Soon To Love), que conseguiu melhor captar, com espírito crítico e muita sinceridade, a loucura que pode caracterizar a realização de um filme. A novela de Paul Brodeur, em que "The Sunt Man" foi inspirado, teve um tratamento especial por Rush, que procurou fundir sonho & realidade no desenvolvimento da trama, sem uma preocupação lógica de apenas contar uma estória. Justamente esta fragmentação/atomização do discurso tradicional cinematográfico é que dá ao desenvolvimento de "O Substituto" uma dimensão maior.
Se Felline, há 18 anos, em seu onírico "Oito e Meio", exorcizava seus demônios e dúvidas, numa obra que teria diversas tentativas de repetição (em 1970, "Alex in Wonderland", de Paul Mazursky, só há pouco lançado no Brasil) e, em 1973, François Truffaut, em seu apaixonado "A Noite Americana", a propósito de uma filmagem, realizava um terno canto de amor a usina dos sonhos, Rush permanece visceral, cáustico em sua colocação deste mundo que esconde, atrás de um (aparente) fascínio toda a engrenagem cruel e desumana. Eli Croos (Peter O'Toole), o diretor maluco que encontra no fugitivo Cameron (Steve Raisback), um duplo substituto - ao "stunt man" Burt, morto numa tomada perigosa, e também como profissional (enquanto Cameron, ex-soldado no Vietnã), procura se esconder da polícia) - Encarna a neurose de muitos cineastas. Não é portanto estranho que o filme tenha sofrido, principalmente nos Estados Unidos, um boicote em seu lançamento. Examinando-se a filmografia de Richard Rush não se encontram muitos títulos de destaque: seu segundo longa-metragem, "Amor e Desejo" (Of Love and Desire, 63), rodado no México, ficou famoso por ter sido apenas o penúltimo filme interpretado por Merle Oberon. Após uma série de filmes de ação, praticamente esquecida mesmo pelos cinéfilos mais fanáticos ("A Pista do Trovão/Thunder Alley", 67; "Os Demônios Sobre Rodas/Hell's Angels on Whells", 67; "Dagger, o Caçador de Espiões/A Man Called Dagger", 68), em 1970, Rush realizaria um filme dos mais atuais para aquela época: "A Procura da Verdade". Com Candice Bergen e Elliot Goulad, "Getting Straight" se passava no explosivo mundo universitário americano, que entre 1967/72 explodiria em manifestações contestatórias. Dos filmes que se voltaram ao tema, "A Procura da Verdade" foi um dos mais sinceros, embora, também com uma linguagem pouco convencional que tornava difícil o entendimento maior para o público que não tivesse uma melhor informação.
"O Substituto" traz além de uma interpretação antológica de O'Toole, também a suave beleza de Barbara Hershey, um dos mais belos rostos do cinema americano, revelada há 12 anos por Franck Perry em "O Último Verão" (The Last Summer", 69) e que Martin Scorcese aproveitaria, inteligentemente, em seu segundo longametragem, "Sexy e Marginal" (Boxcar Bertha, 72). A fotografia de Mario Tosi é das mais criativas, mas se fosse necessário apontar um destaque especial, este seria para a magnífica trilha sonora de Dominic Frontiere. Já na abertura do filme, com a imagem do urubu voando entre as árvores, cortada para o cachorro da rodovia, sente-se o emolduramento sonoro perfeito, com uma trilha que, em alguns instantes, chega a lembrar o clássico Nino Rotta, compositor favorito de Felline. E ainda como uma atração a mais, a sensível Dusty Springfield interpreta a balada-tema "Bits & Pieces", com letra de Norman Gimbel.
Quem curte o cinema não pode deixar de assistir "O Substituto", um dos melhores filmes de 1981.
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De cinema, também: João Aracheski Filho, pessoalmente, supervisionando os trabalhos de conclusão da reforma do Cine São João. A previsão é concluir as obras até sexta-feira, para já no sábado, em 5 sessões diárias, a casa lançar "Estado de Sítio", 1973, de Costa Gravas - que deverá permanecer um mês em cartaz.
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