O "Sarau" de Paulinho
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 07 de fevereiro de 1974
Paulinho da Viola hoje, amanhã e domingo no Paiol. Um show de música.
Descendo o morro do samba duro e envolvente de Cartola e Nelson Cavaquinho, Paulinho da Villa, manso, chegou à beira do asfalto com as certezas revolucionárias de Gilberto Gil e Caetano Veloso. Quando olhou, sentiu que seu samba da Portela tinha se passado para a Mangueira; que o subúrbio estava nas buates da Zona Sul e seu Rio tinha passado em muitas vidas e velas (Tarik de Souza, de "Veja" e "Opinião").
Sarau, s.m Reunião festiva, de noite, em casa particular, clube ou teatro; concerto musical, de noite; festa literária noturna (Aurélio Buarque de Hollanda Ferrreira, "Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa").
Alguma coisa para ocupar as mãos. Martelo, serrote, formão - a paciência do artesanato, a dignidade do trabalho manual. Viver a simplicidade de construir os objetos. Os objetos trabalhados, a grande tranquilidade de ter construído com as mãos algo sólido, bonito, agradável à vista e ao tato.
Alguma coisa para ocupar os dedos. Flauta, cavaquinho, violão - a calma ágil dos sons tecidos em delicada trama, a dignidade do trabalho em criação.
Viver a simplicidade de trabalhar a música. A música, trabalhada, espalhando-se pela casa, o prazer geral, o claro enigma da criação resolvido na harmonia dos chorões. Aqui está Paulinho da Viola, compositor e artesão.
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Nada melhor do que este cristalino texto de abertura do fascículo que a Abril dedicou a Paulo César Baptista Faria para sintetizar a ternura, o trabalho e o bom gosto que o fazem o mais importante compositor brasileiro - dentro de uma linha autenticamente popular, com as raízes nas Escolas de Samba, nos morros - que ele soube traduzir numa música lírica e artesanalmente perfeita, consumida avidamente pela classe mais informada da Zona Sul - e da sociedade urbana.
A presença de Paulinho da Viola pela segunda vez no Teatro do Paiol (hoje e amanhã, 21 horas; espetáculo de despedida no domingo) - onde ele já esteve em junho do ano passado, ali apresentando o melhor espetáculo de MPB dos muitos que ali tiveram lugar - reveste-se de grande importância: é uma oportunidade de quem ama a nossa música, conhecer o melhor espetáculo de MPB apresentado na Guanabara em 1973: "Sarau", no qual Paulinho somou ao seu excelente conjunto - Elton Medeiros, ritmista e cantor; Copinha, flauta; Dininho, contrabaixo; Cristóvão, pianista e Elizeu, baterista - um dos mais notáveis grupos dos anos 40/50 da vida brasileira: o Época de Ouro, que durante muito tempo trabalhou com Jacob do Bandolim. E a idéia de fazer um show com o grupo Época de Ouro há muito tentava Paulinho, porque foi com Jacob e seus músicos - entre os quais seu pai, Bendito César Ramos de Faria, que ele aprendeu os primeiros acordes: todas as semanas apareciam em sua casa uns senhores austeros, que exigiam silêncio para tocar. E, em meio àquela simplicidade severa, iam nascendo sons que Paulinho jamais esqueceria. Depois o menino ficou sabendo da importância de Seu Jacob: aquele senhor empertigado, que pedia silêncio com aquele vozeirão, era o respeitado Jacob do Bandolim, e o conjunto o Época de Ouro. Soube mais. Que aqueles senhores eram chamados de "chorões", por darem seqüência ao chorinho, uma das formas mais marcantes da música popular brasileira. E Paulinho, observando os complicados volteios daquele tipo de música, decidiu que iria tocar o mesmo instrumento que seu pai, Benedito, que não gostou da idéia: tocar violão, ser sambista, não leva camisa a ninguém. Paulo César Batista de Faria, nascido no Rio de Janeiro, a 12 de setembro de 1942, teria que ser "doutor" (mais tarde ele contaria essa história no samba "Catorze Anos"). Enquanto estudava no Colégio Joaquim Nabuco, Paulinho ia tratando de aprender violão por conta própria. Depois, teve um professor: Zé Maria, amigo de seu pai. Mas foi 1959 o ano importante para sua carreira: conheceu um violonista chamado Chico Soares, apelidado de Canhoto da Paraíba, que tocava com as cordas invertidas, ou seja, no mesmo violão usado por uma pessoa que não é canhota. Isso foi decisivo para Paulinho. Impressionado com Canhoto passou a estudar com mais entusiasmo e logo fez um chorinho.
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De seu primeiro chorinho a "Comprimido" - seu último sucesso, incluído no maravilhoso lp que fez no ano passado ("Nervos de Aço", Odeon), Paulinho da Viola criou em menos de 10 anos muitos sambas clássicos e, coisa rara num novo sambista, fez lps que, sem distinção, merecem indiscutivelmente a classificação de obras-primas. Anualmente, cada novo disco que faz entra invariavelmente na lista dos melhores, pois Paulinho além de ter uma produção do melhor nível, sempre escolhe o que existe de mais autêntico e puro entre seus companheiros - revelando novos talentos ou fazendo justiça a sambistas do passado, injustamente esquecidos - como ainda em seu último lp, onde incluiu "Nega Luíza" de Wilson Baptista.
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Este ano, Paulinho tem motivo de uma justa comemoração: foi há 10 anos que ele se entusiasmou com "esse negócio de composição e comecei a fazer música pra valer". Em 1965, dois acontecimentos importantes em sua vida: o musical "Rosa de Ouro" e a gravação do lp "Roda de Samba". O show foi montado por Hermínio Bello de Carvalho e apresentado no Rio, em São Paulo e na Bahia. Clementina de Jesus e Aracy Côrtes eram acompanhados pelos Cinco Crioulos: Elton Medeiros, Nelson Sargento, Anescarzinho, Jair do Cavaquinho e Paulinho - que agora já ganhara de Zé Keti e Sérgio Cabral seu apelido.
O disco também foi idéia de Zé Keti: em fins de 64, resolveu reunir compositores de várias escolas de samba para gravarem, cantando e tocando suas músicas. Foram à Musidisc e gravaram uma fita que ficaria como sugestão de repertório para outros cantores. Mas o tape ficou tão bom que a Musidisc resolveu gravar logo o LP. O conjunto dos Cinco Crioulos, reforçado por Zé Keti e Oscar Bigode, passou então a chamar-se "A Voz do Morro". E entre as músicas dos outros compositores já apareciam três de Paulinho: "Coração Vulgar", "Conversa de Malandro" e "Jurar com Lágrimas".
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Apesar de apenas uma década de atividades profissionais, a carreira de Paulinho é tão brilhante, tão rica de fatos importantes para a MPB, que justificaria um longo ensaio - aliás trabalho que há muito nos tenta. Mas isto tiraria muito do encontro da apresentação que o jornalista Sérgio Cabral, d'"O Pasquim" - um dos homens que sabe das coisas de nossa música - faz em "Sarau", espetáculo com a participação de 14 pessoas e que hoje, amanhã e domingo, estará encantando o público que aprecia a boa música - e que sábado, em iniciativa do Conselho Municipal de Turismo de São Francisco do Sul, presidido pelo empresário Luiz Carlos Ritzman, estará sendo apresentado naquela praia - para toda a população - numa noite de Lua Cheia e muita música e amor.
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