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Aramis

Oliver, uma navalha-câmera na brutalidade da guerra (I)

O impacto que, há três anos as imagens-denúncia da violência na guerra do Camboja provocavam em "Os Gritos Do Silêncio" (The Killing Fields, de Roland Joffe) repetem-se, agora, ainda com maior dureza e contundência em "Salvador - O Martírio De Um Povo" (Cine São João, ainda hoje em exibição) e "Platoon" (Cine Plaza, estréia nacional na quinta-feira). A coincidência destes dois filmes de Oliver Stone estrearem quase que simultaneamente em Curitiba faz com que o espectador possa refletir, demoradamente, sobre a importância do cinema-denúncia. A quem se acostumou a acusar o cinema americano de alienado e escapista em relação à sua temática, vendo apenas os aspectos comerciais, outros mostram de honestidade e coragem. Se "Salvador" é uma catarse do co-roteirista Richard Boyle, que viveu a guerra suja dos países centro-americanos participando dos fatos que o filme conta (ao ponto do personagem interpretado por James Woods ter o seu próprio nome), "Platoon" é, por sua vez, a revivência no 25º Batalhão de Infantaria entre 1967/68. E somente homens como Boyle e Stone que estiveram no campo de batalha, sofrendo toda a miséria de guerras sujas e inúteis como a de Salvador e do Vietnã poderiam traduzir em imagens e horror, a estupidez e a neurose destes momentos terríveis cuja brutalidade destes dois filmes conseguem traduzir. xxx "Platoon", com oito indicações ao Oscar ganhará um espaço especial da imprensa nacional, podendo mesmo transformar-se num grande êxito de bilheteria - ao contrário de "Salvador", que lançado no Brasil há vários meses está tendo uma carreira discreta, e que mesmo nas cópias em vídeo (em Curitiba, a disposição no Tape Clube do Paraná, rua Padre Anchieta) não tem sido procuradas como mereciam - assim como o seu curioso primeiro filme, "The Hand" (A Mão Assassina, 1981) - a disposição apenas em vídeo. "Salvador - O Martírio De Um Povo" lembra imediatamente a outro filme marcante, um dos dez melhores lançamentos de 1985 em Curitiba: "Sob Fogo Cerrado" (Under Fire, 1984), de Roger Spottiswoode. Naquele filme, o personagem central era também um fotógrafo em crise, Russel Price (Nick Nolte), envolvido na guerrilha contra o ditador Somoza, na Guatemala. Como os personagens de outros filmes em que colocam o jornalista como fio condutor de dramas contemporâneos - ("O Ocaso De Um Povo", de Volker Schlondorff; "O Ano Em Que Vivemos Em Perigo", de Peter Weill; "Os Gritos Do Silêncio", de Roland Joffe), Richard Boyle (James Woods), o (anti)herói deste "Salvador - O Martírio De Um Povo" não tem aquela imagem glamorizada com o qual, em décadas anteriores, Hollywood pintava a figura do "correspondente de guerra". Ao contrário, muito mais do que os profissionais vistos nos filmes de Spottiswood, Schlondorff, Weill e Joffe, Richard Boyle está na pior já na primeira seqüência de "Salvador": sem dinheiro, despejado de seu apartamento, abandonado pela mulher italiana, desacreditado e não conseguindo mais trabalho, decide partir para El Salvador em companhia de seu amigo Doc (Jim Belushi), um disc-jóckey também desempregado. Lá, ele espera tirar boas fotos e viver em La Libertad, com apenas US$ 300 por mês. Esta primeira parte de "Salvador" pode até, em termos de narração cinematográfica, ser questionada. A própria trajetória entre San Francisco e El Salvador representava uma dupla tentativa: a de reencontrar Maria (Elpídia Carrilo), a jovem salvadorenha com quem ele teve um caso, da primeira vez em que esteve no país (e com quem espera recomeçar a sua vida) e a de fazendo uma boa reportagem sobre a guerra civil, recuperar-se profissionalmente. Neste enfoque individual, no qual "Boyle parece mais preocupado em lamber as suas próprias feridas do que em olhar a sua volta e nesse sentido o filme poderia passar-se em El Salvador quanto em qualquer outro lugar" - como observou Lauro Machado Coelho ("Jornal da Tarde", 13/10/86), "Salvador" poderia enfraquecer-se como cinema. Entretanto, ao se voltar para o conflito salvadorenho, o filme de Oliver Stone adquire a imensa grandiosidade que o faz uma obra contundente, com a emoção de reunir, quase de forma didática, todo o painel que torna mais facilmente compreensível o drama de Salvador, que vive uma das mais sujas e cruéis guerras civis do planeta. Assim, o roteiro de Boyle/Stone adquire um sentido documental, ao focalizar a violência dos esquadrões da morte do Comando Maximiliano Hernandez, chefiado pelo dirigente de extrema direita Roberto d'Aubuisson (que no filme aparece com o nome de Comandante Max), eliminando qualquer suspeito de ajuda aos rebeldes. Fatos recentes, ocorridos entre 1980/81 e que estão na retina do espectador - são reconstituídos com crueza: o assassinato do arcebispo D. Oscar Arnulfo Romero, a 24 de março de 1980, após um sermão em que conclamou os soldados a pararem com a repressão; os combates em Santa Ana, a segunda cidade do país, quando ela foi atacada pela Frente Farabundo de Marti de Liberação Nacional (início de 1981) e, especialmente, o assassinato de seis religiosas americanas, violentadas por soldados da Guarda Nacional, gota d'água que levou os Estados Unidos a suspenderem a ajuda militar ao governo direitista de Salvador - e que proporcionou a escalada da guerrilha. Oliver Stone questiona - e profundamente - a participação do governo americano em regimes ditatoriais e brutais como de El Salvador, havendo, para tanto, uma seqüência capital quando Boyle, ao voltar de uma visita ao reduto dos guerrilheiros do FMLN, encontra-se com o adido militar e o assessor de imprensa da Embaixada Americana. O próprio dilema do embaixador Robert White - no filme chamado de Kelly (Michael Murphy) (que, na verdade acabou se demitindo por não concordar com a política de seu país) é colocado com seriedade neste filme que, seqüência, vai adquirindo uma seriedade de documentário, no qual o espectador se envolve e se emociona. Ao final, quando são dadas as informações de que regime brutal e militar ainda se mantém em Salvador (com ajuda americana) o espectador deixa o cinema com uma dor de estômago de, contemporaneamente, ser testemunha de crimes tão grandes. xxx Filmes como "Salvador - O Martírio De Um Povo" adquirem uma dimensão tão grande e especial que deveriam ser mostrados obrigatoriamente ao maior número de pessoas. Se "Platoon", nesta semana chegando ao Brasil, traz também, com imagens da maior coragem a denúncia da guerra do Vietnã (que acabou há 11 anos), Salvador continua vítima da brutalidade dos homens. Mesmo que não fosse um filme artisticamente bem realizado - e ele o é, com ótima fotografia de Robert Richardson, música do francês Georges Deleure (o mesmo autor da trilha de "Platoon") e um excelente elenco - já valeria como denúncia. Não se trata de estabelecer comparações entre as guerras de Salvador e do Vietnã. Ambas sujas, repelentes, cruéis - que precisam ser sempre denunciadas a humanidade - como momentos da intolerância e da violência do homem contemporâneo.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
17
25/03/1987

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